quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Eu não devo nada a meu agressor. Devo tudo ao meu ódio.

GATILHO/DISPARADOR/TRIGGER: estupro, violência psicológica.



Durante precisamente uma semana eu pensei sobre como me posicionar acerca do hediondo texto da famosa blogueira Lola redimindo um estuprador, pedófilo, que abusara de duas crianças por anos, e, sem se entregar à política, mortifica-se de arrependimento. Eu oscilei entre escrever como sobrevivente de pedofilia, sobrevivente de um relacionamento abusivo, feminista, e até acadêmica. Embora eu saiba que as coisas não podem ser separadas assim, por hoje não quero pegar pesado nas tintas da teoria, porque aparentemente essa é a maneira mais eficaz de se conversar com outras sobreviventes.

Eu passei por um abuso sexual aos 12 anos de idade. À luz do dia. A um quarteirão da minha casa. Em um dia bonito e ensolarado. Meu agressor não estava armado: ele era um homem adulto, mas não estava armado. Meu agressor não gritou comigo: mas ele era uma pessoa adulta, e nós sabemos que devemos obedecer. Meu agressor simplesmente disse que eu estava linda, e eu fiquei feliz por receber um elogio: agradeci. Meu agressor simplesmente perguntou se poderia chegar mais perto para conversar melhor comigo: eu consenti. Meu agressor apenas apertou meu braço até doer, e eu tive que explicar à minha mãe, naquela noite, como eu tinha arranjado aquele machucado. Meu agressor apenas perguntou se podíamos conversar no terreno baldio que estava ao nosso lado, em uma rua deserta, e eu disse que não. Meu agressor apenas disse "mas eu não estou fazendo nada", e eu tive que concordar - mas meu braço continuava doendo.

Eu era a menina mais feia da escola. Gorda, sardenta, e com "cabelo de preto". Eu tinha sido alertada pelos meus amiguinhos de que iria morrer virgem, que nunca teria um namorado. Eu pensei, eu sinceramente pensei, que aquele homem que apertava meu braço, que continuava apertando meu braço, iria ser minha única oportunidade de dar um beijo em alguém. E ao mesmo tempo, eu olhava seu corpo, eu olhava a bicicleta que ele estava empurrando, eu olhava para sua bermuda e para a sua ereção, e sentia repulsa. Sentia repulsa de mim. Da condição miserável que é ponderar se vale a pena perder sua virgindade num estupro - porque ia ser minha última chance. E, francamente, eu mesma me surpreendi com meus gritos. Uma torrente de palavras saiu da minha boca, sem sentido, sem controle. Que eu ia contar para todo mundo, que meu pai era policial, que a minha amiga estava me esperando, que a minha mãe vinha me buscar. Palavras que se contradiziam, mas que denunciavam, que chamavam atenção. A rua estava deserta, mas aqueles gritos tão impressionantes fizeram meu agressor hesitar e soltar meu braço. Ali eu vi minha chance e corri. Corri muito. Ruas e mais ruas. Cheguei na casa da minha amiga com uma marca roxa nos braços e a cabeça muito confusa.

Eu tinha 12 anos.

A partir dali, Jiló começou a aparecer na minha vida com muita frequência. Até hoje não sei seu nome, só esse apelido, Jiló. Ele estava por perto quando eu chegava da escola e quando eu brincava na rua. Então, comecei a não sair mais - a não ser acompanhada. Hoje sei que pedófilos estudam suas vítimas e a situação de possíveis abordagens; naquela época, eu apenas pensei estar paranóica. Paranoica por nada - pois, afinal, a não ser por um braço machucado... Paranoica por nada: feia, gorda, quem ia me querer? Paranoica por nada: Jiló trabalhava em 5 casas na minha vizinhança, limpando a piscina ou passeando com os cachorros, "dando uma olhada" nos filhos de alguém que foi ali e já volta. Um moço jovem, risonho, simpático, de quem ninguém desconfiava. Eu continuava sendo a menina mais feia da escola.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Os meninos da minha turma fizeram uma aposta para ver quem ia ficar com meu primeiro beijo. porque eu era a menina mais feia da escola, e ninguém achava que eu já poderia ter beijado alguém. Não cheguei a beijar nenhum garoto.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Mas se eu abaixava para amarrar meus cadarços, tinha sempre um menino para tentar ver a cor da minha calcinha.

Eu continuava sendo a menina mais feia da escola. Ninguém me desejava, a não ser para fazer do meu corpo local de abjeção, desprezo e piada.

Eu mudei de escola para uma nova escola em que eu não era mais a menina mais feia da escola. Mas nada mudou para mim. Quando alguém se aproximava, eu ainda achava que era alguma espécie de piada. Eu sentia medo, repulsa, e me sentia violentada por quaisquer abordagens sexuais. Eu namorei um menino lindo, meu primo, com quem eu tocava piano, nadava e jogava video-game, e quando ele me tocava eu sentia um misto esquisito de nojo e gratidão. Porque eu seria pra sempre a menina mais feia da escola. Aquela que só pode ser desejada com violência.

E não à toa, eu acabei entrando anos mais tarde em um relacionamento violento atravessado por essa gratidão. Porque ele me desejava e amava, e eu era a menina mais feia da escola. Ele me achava burra, e chata, e seus amigos, seu RPG, seu Rugby, eram mais importantes que eu - mas ele me amava e eu estava grata. Ele não queria usar camisinha, mas eu estava grata; ele não me ajudou a pagar meu aborto, mas eu estava grata. Porque eu era a menina mais feia da escola, e a única maneira de alguém me desejar era me machucando.

Para completar, meu agressor, o tal Jiló, veio trabalhar na minha casa. Na minha casa. Chamando meu pai de "patrãozinho" e almoçando na mesma mesa que eu. Mas ele não tinha feito nada. A não ser um hematoma no braço, nada. Eu era paranoica, maluca, convencida - como é que alguém poderia me desejar? Eu era a menina mais feia da escola...

Hoje eu sou feminista. E só sendo feminista entendo que foi estupro, mesmo que não tenha havido a penetração: pois houve a intenção. Até hoje, Jiló trabalha na vizinhança e todos confiam nele sem dificuldade. Mas eu passei 14 anos de minha vida não apenas perdoando, mas sendo grata ao meu estuprador. 14 anos de perdão. Durante esse tempo todo, perdoá-lo apenas serviu para tornar minha vida um pesadelo daqueles confusos e surreais, pesadelo no qual eu aceitei qualquer violência como carinho e desejo. E hoje, que eu o odeio, é quando, na história da minha vida, mais claro esteve o abismo entre uma carícia e uma porrada.

Eu não devo nada ao meu agressor. eu devo tudo ao meu ódio.

domingo, 28 de julho de 2013

Sobre imagens quebradas e mulheres mortas

Eu estava no ônibus, voltando da Marcha das Vadias, cansada e muito feliz. Enquanto o movimento feminista luta contra a apropriação capitalista do dia 08/03, tentando resgatar sua história como um dia de luta, enquanto lutamos pela visibilidade do nosso extenso calendário, que inclui datas como o dia da mulher negra latina e caribenha, a Marcha das Vadias é uma espécie de (controverso) carnaval: um espaço em que se luta contra o racismo, contra o machismo (por razões óbvias), contra a homofobia... é, de longe, a data feminista em que eu mais vejo militantes independentes, gente que não milita de maneira orgânica e mesmo assim está puta, faz seu cartaz, e aparece na hora... É a marcha mais heterogênea entre as feministas, e não necessariamente as atitudes de alguns grupos representam o conjunto da marcha, exatamente por esse caráter múltiplo, que é o que a torna minha marcha preferida. E eu estava cansada de pular, cantar, ver as coisas lindas que as pessoas estavam fazendo, quando diversas pessoas me mandaram mensagens perguntando que porra foi aquela de pessoas quebrando imagens religiosas. Eu não respondi no momento porque achei melhor dar uma resposta só, pra todo mundo. E é esta.

Uma das frases mais famosas, que mais aparecem nas Marchas por aí, é essa: "tirem seus ovários dos meus ovários". Em tempos nos quais o relativismo virou um fim em si mesmo, a frase se dilui num contexto de interpretações que levam a frase para o lado mais simbólico, "cultural", como se os símbolos não organizassem violências que se dão na materialidade dos corpos. Existimos nos signos, por signos, e a inquietação do movimento feminista com as palavras vadia, feminicídio, misoginia, é a luta por tornar visíveis um conjunto de violências que, não tendo maneiras de se organizar num discurso visível e legível, acabam sendo naturalizadas. Quando dizemos "tirem seus rosários dos nossos ovários", estamos dizendo que o discurso tem uma presença física, real, e mortífera, nos corpos que engravidam e só têm duas opções: tornarem-se mães sem desejar, ou correr o risco de morrer em uma clínica clandestina.

Eu fiz um aborto. Fiz um aborto pois meu namorado de então, descrito no post anterior, abusava psicologicamente de mim e mantinha um regime de sexo sem camisinha, já que usar camisinha era "chupar bala com papel" e eu não conseguia me adaptar a nenhum anticoncepcional. Eu me guiava estritamente pela tabelinha, até que, em um final de período da faculdade, minha menstruação ficou louca, desceu antes do tempo, eu fiz sexo MENSTRUADA e engravidei. Estava no meu primeiro estágio, fazia monitoria na faculdade, tinha uma péssima relação com a família, me relacionava com um cara que estava cagando para mim. Com o dinheiro que eu tinha disponível, conversei com minha médica, e por oitocentos reais consegui fazer "o procedimento" numa clínica bizarra. Bizarra, porque a cada dez minutos uma menina nova entrava na sala de "cirurgia"; porque, na sala de espera, ficávamos nuas, somente vestidas por um roupão de papel crepom; bizarra porque eu entrei na sala enquanto uma menina era levada embora nos braços, e provavelmente uma série de instrumentos usados nela seriam usados em mim sem nenhuma esterilização; bizarra porque os restos removidos de nossos úteros iam para um BALDE QUE FICAVA AO LADO DA MACA; BIZARRA porque, enquanto eu chorava, o médico disse apenas "se você aspirar o choro, vai morrer sufocada".

Uma clínica bizarra porque isso é o que você consegue quando tem os tais oitocentos reais. Quando não tem, o que te espera são as mães de anjo, o citotec, aborto com talo de couve, agulha de tricô. A maior parte dessas pessoas que abortam é mais pobre do que eu sou, são pessoas trabalhadoras que já são mães e não querem submeter seus filhos à miséria. E ao contrário de mim, que sou ateia, essas mães são cristãs, e enfrentam diariamente, às vezes por toda a vida, a culpa pelo que fizeram; julgam-se desnaturadas, porque o amor materno que nos dizem cercar a gravidez simplesmente não estava lá. O que estava lá era a necessidade de sobreviver com subempregos e salários injustos, um marido violento que se recusava a usar métodos contraceptivos, um sistema de saúde que reluta em distribuir métodos contraceptivos além da camisinha que os homens são ensinados a NÃO usar.
Isso é físico, isso é material, isso é a presença real de rosários em nossos ovários, causando mortes e sequelas todos os dias. Por isso, quando a JMJ distribui terços feitos de embriões ou bebês em miniatura que não correspondem ao estágio de desenvolvimento de um feto daquele tamanho, isso deveria nos chocar. Deveria, pois se trata da criminalização, da culpabilização de pessoas que não tiveram nenhuma escolha. É violento, é injusto. É terrorismo.


Na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, ontem, um grupo de manifestantes resolveu fazer uma performance porno-terrorista envolvendo imagens que são sagradas para alguns cristãos. A performance incluía quebrar crucifixos e imagens de jesus, bem como inserir nas cavidades anal e vaginal as cabeças de duas santas. Tudo isso feito por corpos não-heteronormativos, não-brancos, não-bonitos - ou eu poderia dizer corpos queer, negros e considerados feios pelo capitalismo. Ao final da performance, todas as imagens foram quebradas. Para mim, a mensagem ali era muito clara, muito íntima também: era tornar gráfica a presença da religião em nossos corpos, através da inserção de estátuas no interior de corpos; e ao retirá-las, quebrá-las, rejeitando a presença de deuses que não adoramos, alienando-nos em relação àquele único bem que temos, no final das contas: nosso corpo.

Imagino que isso ofenda muitos cristãos. Mas mesmo um cristão vai concordar que se tratavam de imagens, objetos de cerâmica fabricados em escala industrial e vendidos em qualquer esquina. Ninguém morreu. Já os rosários em nossos ovários, esses matam todos os dias. E ao transformar a profanação de símbolos religiosos num ato de terrorismo, o que a performance faz é trazer à tona o fato de que submeter milhares de mulheres aos caprichos dogmáticos de uma religião falocêntrica também é terrorismo. Terrorismo de Estado.

domingo, 14 de julho de 2013

Você não deve nada a seu agressor - abuso psicológico em relações heterossexuais*

*Depois de escrever este texto, conversei com algumas amigas para conferir se essa situação se restringia aos relacionamentos heterossexuais e concluí que não. Relacionamentos abusivos estão presentes entre gays, lésbicas, pessoas trans*, de forma que, mesmo que você não seja HT, muita coisa seja válida. Ainda assim, como não conversei com um número muito grande de pessoas, optei por deixar o texto como está.

Cerca de uma semana atrás, muita gente ficou chocada quando o desembargador Sidney Rosa da Silva declarou que o caso de violência de gênero de Luana Piovani e Dado Dolabella não poderia ser enquadrado na Lei Maria da Penha uma vez que a referida atriz teria condições materiais suficientes para não ser dependente de seu agressor. Sutilmente, como convém ao idioleto legislês, Sidney afirma que, para concluir que “é público e notório que a indicada vítima nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem", basta "uma simples análise dos personagens do processo", e fecha sua conclusão afirmando que a lei não pode proteger Luana uma vez que sua relação - de dois anos e quatro meses de namoro culminando em um noivado - com Dado não era estável. Ou seja: a justiça brasileira entende que a Lei Mari da Penha é a medida pela qual você premia uma mulher, de preferência morta, pela sua submissão. Tente andar na linha do patriarcado, ou quem vai ser julgada é você - ou só eu entendi que "uma simples análise dos personagens do processo" faz clara referência à vida amorosa pregressa da atriz?

Muita gente tem dificuldade de acreditar nessas situações. Ainda é muito difundida a ideia de que a única desigualdade que existe entre homens e mulheres é a econômica, e que uma vez esta superada, a sobrevivente é que é uma otária, que está tendo o que merece, ou na máxima Nelson-rodrigueana, "gosta de apanhar". Mas a gente sabe como nossas subjetividades são construídas, como somos representadas na cultura popular ou de massas: uma mulher, em termos de narrativas dominantes, só é completa na presença do Amor. Só somos seres plenos, nossas vidas só são válidas, se estivermos inseridas afetivamente num projeto de família burguesa que envolva a doação sem limites de nossos corpos e mentes para a empresa amorosa. Algo está dando errado? Você não está se empenhando. Você está apanhando? Dê a outra face. E nesse contexto misógino, nós somos as presas preferenciais de abusos psicológicos

Eu nunca vivi um relacionamento que tivesse violência física; mas passei por dois, um longo e um breve, que foram marcados por um abuso psicológico severo. Lendo outros relatos de pessoas em casos semelhantes aos meus, levantei algumas características que se apresentam no momento inicial da relação e que podem ser um bom alerta de que nós estamos caminhando para uma furada.

1. O cara sofrido que te conta a vida inteira no primeiro dia
Geralmente, isso nos comove. Quando se vive perto de narrativas como A Bela e a Fera, em que o poder na mulher é traduzido como o de mudar a vida de um homem, muitas pessoas se sentem empoderadas ao se pensarem como capazes de salvar uma vida. Então, o cara chega para você e conta de maneira detalhada e amplamente dramática como ele foi vítima das piores situações da vida: preconceito, pobreza, alguma grave desilusão amorosa, perda de pessoas queridas... O que importa nesta narrativa não é a veracidade dos fatos: tudo pode ser verdade. Mas a escolha dos eventos é sempre baseada num paradigma em que o homem é a vítima absoluta e inconsolável, e aquilo que o flagela, seja uma condição financeira, seja uma pessoa, está claramente errado. Isso coloca a virilidade dele aparentemente em xeque, e o fato de ele escolher você para se abrir tão completamente joga você em uma dívida que, pode acreditar, vai ser cobrada depois. Porque ele é muito sofrido e não pode sofrer mais; qualquer coisa que você faça de errado será a gota d'água, e essa história de sofrimento vai ser invocada muitas vezes para igualar você a todas aquelas coisas e pessoas que destruíram a vida dele.

2. A grande prostituta
É uma narrativa comum, mas não imprescindível: meus dois relacionamentos abusivos passaram por esse momento, então acho que vale a pena contar. Já ficou claro, naquele primeiro dia em que o cara contou sua sofrida história de paladino da justiça, que ele é uma jóia rara em meio a todos esses caras babacas que só querem usar você. Ele é diferente, sensível, seu coração um cristal que pode quebrar a qualquer momento e que agora está em suas mãos. Então ele vai, didaticamente, contar a você uma situação passada em que ele fez isso com outra mulher. Esta, por sua vez, só queria brincar com ele - porque, aparentemente, o mundo está cheio dessas bíblicas grandes-prostitutas que vivem sua vida em função da vida dos homens. Nossa função é roubar, matar e destruir corações de pobres cavalheiros... e você não quer ser como ela. Mais uma vez, o paradigma "eu não fiz nada de errado e fui vítima da mais completa injustiça" vai se repetir, e você vai receber o encargo de redimir o seu gênero demonstrando quão santa você é.

Essa narrativa geralmente é falsa. No meu caso, foi um caso típico de friendzone, isto é, o cara tratou uma garota como um ser humano e daí concluiu que toda a sua cortesia tinha se transformada numa dívida sexual. E quando ela simplesmente o via como ele se comportava, "como um amigo", o cara ficou decepcionado, saiu falando coisas sobre ela para todas as mulheres com quem ele passou a se relacionar depois.

3. Você também é uma grande prostituta, mas eu perdôo você
Este não é seu primeiro relacionamento; no meu caso, não apenas não era o meu, como eu vinha de uma experiência de relacionamentos abertos, múltiplos relacionamentos simultâneos ou relacionamentos monogâmicos de curtíssima duração. Meu agressor, num primeiro momento, não condenou frontalmente meu comportamento, mas declarou que não gostaria de estar num relacionamento aberto. Eu propus uma monogamia temporária (gente, isso nunca dá certo), e neste momento ele deu a entender que, como minha natureza não era monogâmica (wtf natureza, galera?), teria dificuldades em confiar em mim. Eu lhe dei um tempo para pensar, algo como uma semana, ao final da qual ele me perdoou. Eu achei, na época, estranha essa lógica do perdão, já que eu não tinha feito nada contra ele, nem nada de errado. E essa lógica do perdão entrega os pontos: o cara vê você como propriedade, estando apto a julgar seu comportamento como se você sempre tivesse pertencido a ele - como um senhor que, antes de comprar um escravo, pergunta sua história ao vendedor.

4. Declarações de amor viram megaeventos
Para essas pessoas, é muito importante fazer declarações públicas no local de trabalho, de estudo, no círculo familiar. Isso é tudo o que seus colegas e parentes vão ver, e que vai lhe render a reputação de "bom partido": assim, quando você por algum motivo quiser contar algo que ele tenha feito e te desagradado, você não vai obter confiança de pessoas que são especialmente próximas. Porque essas pessoas abusivas sabem que, para instalar uma situação difícil de se sair, vão precisar afastar você de círculos sociais que são importantes. Se o cara sente muita necessidade de transformar declarações de amor em megaeventos, desconfie.

5. Pequenos eventos viram megabrigas
Lembra daquela parte em que ele já sofreu demais nessa vida, e que não aguentava mais? Neste momento você descobre que aquilo era uma ameaça. Obviamente, quem vai definir os limites do que ele não vai mais aguentar é ele mesmo: mas a partir disso, qualquer coisa que o desagrade vai virar uma briga incontrolável e o assunto sempre vai chegar em um momento no qual ele vai levantar todo o histórico de dor e sofrimento da vida dele, e comparar ao seu histórico de grande prostituta que ele está fazendo o favor de perdoar. Ficando claro, também, que não tem perdão nenhum, porque o seu passado vai ser para sempre um trunfo e objeto de chantagem.

6. Ninguém vai te amar como eu te amei
E essas brigas vão acabar em lágrimas (muitas dele...), e com o relacionamento terminando. Ele vai pedir para voltar muitas vezes, senão na maioria. As brigas vão, ciclicamente, ficar mais e mais violentas, mas os retornos vão ficar cada vez mais épicos, grandiloquentes, cheios de promessas, e um discurso sempre muito articulado demonstrando quase cientificamente que ele entendeu o problema e é um novo homem. E você vai ouvir frases parecidas com as que eu ouvi. Frases aparentemente líricas, mas que não têm nada de legal. Eu ouvi muitas vezes "Ninguém vai te amar como eu te amei". Para uma moça que está acostumada a pensar que o grande objetivo de sua vida é ingressar no paraíso do Grande Amor, essa frase é uma profecia assustadora. Nessa frase está subentendido, de fato, que esse cara é perfeito; que tudo o que ele fez foi certo, foi lindo, e se por acaso ele errou alguma vez, foi um acidente; sobretudo, essa frase quer dizer que você não presta - seja porque é promíscua, "gorda" (o que é "ser gorda" senão o que o patriarcado diz que é?), "feia" (idem do adjetivo anterior), porque você é uma péssima mãe, amiga, namorada, seja lá o que for... E que ele é a sua tábua de salvação, sem a qual você vai acabar sozinha e seca para todo o sempre.

Se você tem uma amiga que desapareceu assim que começou a namorar; se você vê o namorado dela sempre fazendo peripécias grandiosas para demonstrar seu grande amor; se todas as brigas dela terminam com o relacionamento desmanchado, fique alerta e dê um toque. Falo dela em terceira pessoa porque, assim como eu, ela não deve achar que esse relacionamento é abusivo. Porque não, não é fácil saber: quando você está isolada das amigas, da família, e quando toda uma cultura enaltece o sacrifício amoroso como o único valor que a mente e o corpo de uma mulher pode obter, fica-se confusa, alienada, triste, e pouco apta a tomar decisões. Eu precisei de muita ajuda; durante meses eu não conseguia fazer certas coisas sozinha. Eu demorei a recobrar a confiança em quaisquer pessoas, inclusive aquelas que estavam me ajudando. 

No meu caso, o ciclo não chegou à violência física, mas pode chegar. E nesses casos, não importa o quanto a mulher receba de salário, porque a dependência e a opressão aqui envolvem as instâncias psicológica e sociais. Sim, essas pessoas precisam de ajuda - não reforce a ideia de que elas estão em dívida com seus agressores. Elas não estão. Você não está.

domingo, 30 de junho de 2013

Cavalheirismo e backlash: porque nós sabemos abrir nossas portas - e pernas.



INTRODUÇÃO: backlash à brasileira

A toda ação corresponde uma reação na mesma direção, com mesma força e sentido contrário - é o que nos diz a lei da física. Embora eu não seja uma ardente defensora de aplicar irrestritamente as "leis" da física à experiência humana, muito mais complexa, parece ser o caso da política. Quando me vejo rodeada de tantas reações ao feminismo, algumas debatendo-se num mar de insegurança que leva à incoerência crassa de argumentos, penso que estamos diante de um termômetro, pelo qual podemos avaliar que estamos no caminho certo no enfrentamento contra a hierarquia dos gêneros (misoginia, ou machismo). A necessidade de criar respostas organizadas ao movimento indica que estamos bem das pernas em termos de organização, seja nas ruas, seja nas teorias. E as respostas vêm vindo, nas ruas, nas academias, mas também nas mesas de bar, nos churrascos de família: quando se trata da produção teórica acerca do anti-feminismo, o que valida uma teoria é muito menos o que ela diz, mas quem a está dizendo, e nesse sentido, basta ser homem, e a verdade já lhe é garantida na largada.

A esse "contra-ataque" é que Susan Faludi dá o nome de backlash, em seu livro homônimo. Trata-se de uma resposta ao feminismo que parte de muitas frentes, desde o âmbito individual de homens (em geral cis e heterossexuais) que se sentem ameaçados em seus privilégios diante das conquistas das mulheres* quanto por organizações que vêem seus pilares ideológicos falocêntricos ameaçados. Na sua descrição, a autora traça um panorama bastante parecido com o do Brasil, no parágrafo seguinte:

O avanço mais recente do backlash veio à tona no fim dos anos 70 entre as fileiras da direita evangélica. Já no começo da década de 1980, a ideologia fundamentalista tinha aberto caminho até a Casa Branca. Em meados da  década, uma vez que a resistência contra os direitos da mulher tinha adquirido aceitação política e social, passou-se para a cultura popular

Qualquer semelhança com Marcos Feliciano na CDH ou Estatuto do Nascituro não é coincidência, minha gente. E para citar a Faludi mais uma vez, "O backlash revende velhos mitos sobre as mulheres fazendo-os passar por fatos novos, ignorando qualquer apelo à razão". E para o meu espanto, um dos mitos ressuscitados recentemente e circulantes no facebook é o patético, desgastado e sem sentido "cavalheirismo".

Cavalheirismo e misoginia, na história e na literatura

Em termos literários, o princípio do cavalheirismo surge na Idade Média, ligado a um gênero poético a que comumente chamamos de "canção de amor". Tendo em vista este período histórico como um momento de hegemonia católica nos campos da filosofia, política e cultura, tem-se aqui uma definição de amor segundo a qual a nobreza do sentimento, bem como a do amante, se medem não pelo prazer da conjunção carnal dos indivíduos, mas pelo envolvimento espiritual que pode ser traduzido na forma da paixão - aqui no sentido do sofrimento e do sacrifício. Tendo em vista também a condição de inferioridade econômica, cultural e religiosa da mulher, que vivia um paradigma aristotélico ao ser considerada um "homem incompleto", as canções de amor versavam, geralmente, não sobre os atributos da mulher amada, mas sobre as qualidades do cavalheiro que, em seu sacrifício (a chamada "coita d'amor), aproximava seu espírito do modelo de divindade cristã.

Sendo assim, numa época hegemonizada pelo poder masculino, o código de cavalheirismo se tratava de uma tecnologia de gênero que dividia os corpos de maneira binária de acordo com suas funções reprodutivas, econômicas, éticas e estéticas, de modo a produzir mulheres numa posição subalterna, impedidas de participar cultural e politicamente da sociedade, tornando-se meros adornos que, na qualidade de propriedade masculina, limitavam-se a receber ou não a corte do cavalheiro. Enquanto isso, os homens eram os responsáveis, proprietários que eram do status de "seres humanos completos", por  formular os códigos sociais segundo os quais podiam ser benfeitores e algozes de mulheres que deles dependiam totalmente. Daí que as canções de amor mantenham uma forte intertextualidade com as "canções de escárnio e maldizer", nas quais as mulheres que não se submetiam às convenções da época tinham suas reputações dizimadas, muitas vezes em poemas com citações nominais.

Sendo assim, a "corte" do cavalheirismo, ainda que se oculte sob uma retórica de gentileza e elogio, é um recurso misógino que parte da premissa que homens e mulheres são categorias naturais e eternas do ser humano;  enquanto tal, mulheres serão inerentemente incapazes para um enorme arco de tarefas cabendo ao benfazejo homem ajudar-nos em nossa deficiência.

Cavalheirismo hoje: sabemos abrir nossas próprias portas - e pernas.

O anacronismo está em que a maior parte das mulheres do mundo, ao contrário do que desejam os misóginos, está inserida com sucesso no mercado de trabalho, encontrando maiores dificuldades no machismo alheio do que em qualquer dificuldade pessoal ou, pior ainda, derivada do gênero a que pertencem. Mais do que nunca, não precisamos de que nos abram portas, pois nós temos, com o tempo, aberto-as sozinhas, tampouco precisamos que nos troquem as lâmpadas ou que matem nossas baratas. O desespero diante do desvalor que o cavalheirismo vem ganhando, de maneira crescente, é o medo diante da conscientização de que em termos dos meios de nossa subsistência, os homens nos são completamente irrelevantes.

Cavalheirismo, então, é um conjunto de preceitos morais que recomendam que determinados tipos de tarefas cabem aos homens na medida estes consideram as mulheres se encontrem incapazes para seu desempenho. Homens estes que nos impõem favores dos quais não precisamos e nos outorgam uma dívida que não queremos pagar, mas que geralmente se traduz em sexo - o que aliás, está implícito também na cultura do friendzone. Homens decidem, sozinhos, do que as mulheres gostam, segundo um código pelo qual o sexo não é uma interação social e afetiva, mas uma troca de favores: e sem nos avisar, nos envolvem numa transação econômico-simbólica, apenas para nos avisar que, nas letras miúdas, estava acordado que toda essa gentileza uma hora se converteria em sexo.

domingo, 16 de junho de 2013

METÁFORAS AFETADAS

Eu gosto das metáforas. Elas sempre me pareceram um jeito estranho e levemente dolorido de entender as coisas. Elas sempre representaram aquele momento cotidiano em que as palavras não são suficientes, em que as palavras só servem pra atrapalhar toda a comunicação. Nessas horas, meu corpo quer jogar os dicionários, que jazem na estante, pela janela, meu corpo quer dançar pra te fazer ouvir. Meu corpo quer tremer pra te fazer falar, meu corpo quer gritar sem emitir um só som.

Nas últimas semanas muitas coisas aconteceram, foram altos e baixos, brigas, choros, desesperos. Mas também houveram risadas, bebidas, sonos e confortos. Mas nada disso exprime tudo o que se passou. Talvez se eu falasse que aquele momento todo era fino como papel de seda, que tudo o que pairava no ar era aquele todo preenchido. E eu ali, olhando o todo desejando ver o nada.

Uma matilha passou correndo bem diante dos meus olhos, aos uivos e ganidos. Já não sei mais dizer o quanto havia de raiva, o quanto havia de decepção, o quanto havia de desejo, o quanto havia de dor. Eram só cores que piscavam e brilhavam e me diziam tanta coisa, aquele som me dizia mais que qualquer palavra. Minhas lágrimas desceram quentes e salgadas, eu ouvia e entendia...

Parei por um momento e olhei pra trás. Vi o longo corredor polonês que percorri, nas paredes as marcas de sangue e choro que ficaram pelo caminho. Algumas janelas mostravam as risadas abafadas que tentaram sufocar, fechei os olhos e me esforcei para ouvi-las. Lembrei de noites de lua cheia, das músicas e dos encontros, das bocas e das mãos, dos gostos e dos cheiros. Abri os olhos e contemplei o longo corredor a minha frente, meio embaçado pela miopia, mas com a certeza de sangue e choro derramado.

Respirei fundo e abri mais uma janela.

Ali estava escuro, só se ouvia as respirações ofegantes. Olhei mais uma vez pro corredor que parecia estar apertando as paredes contra mim, sorri e pulei pro outro lado. Era um quarto? Uma sala? A casa de alguém? Não saberia dizer, nem me importaria em descobrir. Só era possível distinguir o emaranhado de corpos que falavam sem emitir palavras, essa linguagem dxs estranhxs, dxs esquecidxs, dxs subversivxs, dxs que já não sabem mais falar...

Lá estavam elxs, uivando e se lambendo no mais sincero sinal de afeto. A enorme matilha com seus olhos serenos, com seus pelos que vibravam com o vento, com seus focinhos que pareciam rastrear o nada de longe. Caí no chão. Caí porque meu corpo já não se sustentaria, caí porque já não haviam motivos pra permanecer bípede, caí porque toda essa estrutura corporal serve a língua que eu desejo desaprender, caí porque agora meu corpo só seria capaz de uivar e lamber... em sincero sinal de afeto.

Fiquei ali, sentindo os pelos crescerem, o focinho se alongar, os olhos entrarem em foco, os membros se modificarem. Quando fui capaz de abrir os olhos novamente, só havia a lua a minha frente, e a matilha que se aproximava. Eu vi um sorriso naquele uivo. Já não haviam mais paredes, nem janela, nem sangue, nem choro... Haviam cheiros de pensamentos azuis, que se misturavam com os sons avermelhados dos olharem, havia o brilho opaco dos recheios alaranjados que cobriam todo o nada adormecido.

Começamos a correr, talvez fugindo de algo, talvez em busca de algo... talvez os dois...


Era uma corrida solitária apesar de acompanhada. Será que todxs aquelxs seres ouviam aquela música? Era o som dos uivos, da floresta, dos corações, das lambidas, das respirações... Havia uma harmonia desarmônica que não buscava por um compasso exato. E eu queria dizer, queria me fazer compreender... Todo aquele castelo de cartas, construído com tanto afinco e paciência, voaria ao som da primeira palavra proferida. E nós ficamos ali, nos encarando, toda a matilha... E voltamos a cheirar, uivar, lamber... no mais sincero sinal de afeto...

domingo, 28 de abril de 2013

Desabafo


“Este poder que a ciência ou a teoria tem de atuar materialmente sobre nossos corpos e mentes não tem nada de abstrato, ainda que o discurso que produzam o seja. É uma das formas de dominação, sua verdadeira expressão. Diria mais, um de seus exercícios. Todos os oprimidos conhecem-no e tiveram que lidar com esse poder que diz: você não tem direito de falar porque seu discurso não é científico ou teórico, você se equivoca no nível de análise, confunde discurso e realidade, possui um discurso ingênuo, desconhece essa ou aquela ciência.” (Monique Wittig)

Esse pensamento platônico exposto sempre como verdade absoluta já me soa tão cansado e ultrapassado que confesso ter até uma certa preguiça em explicar. Em certos momento, minha indignação é tanta que tenho vontade simplesmente de assumir que todo o resto do mundo já fez essas leituras básicas sobre as supostas minorias. Aí me lembro q eu vivo na minha alegre e colorida bolha.


Ali logo adiante, impera o saber da verdade absoluta, da razão ganhadora de todos os argumentos, da objetividade detentora de toda sabedoria. Ali logo adiante naquele olimpo fictício que nem um singelo tablado possui.


Eu abri com essa maravilhosa frase da Wittig porque nada, repito: nada expressa melhor meu atual estado físico, mental, psicológico e psicodélico que essa frase! Esses pseudo-deuses trabalham ativamente todos os dias pra silenciar pessoas como eu, domesticar pessoas como eu. E pra q eu passe a possuir o simples direito de fala, tenho q me submeter ao jogo sujo dele, e adquirir os títulos inventados por ele, que legitimem uma fala que desmantela o poder deles.


E lá vou eu, todos os dias, jogar o jogo dele, como uma Pollyanna vendida, fingindo que gosto de jogo do contente, esperando o momento em q minha paciência não mais permitirá. E esse momento parece ter se aproximado hoje!


Já não me interessa quem foi o professor q puxou esse gatilho, já não me interessa o q falaram de mim quando eu virei as costas, já não me importa o barulho q eu gerei, a fofoca q se criou ou a oportunidade q falsamente se abriu. Só importa q eu explodi!!


Explodi porque já não podia mais suportar o platonismo velado desse discurso acadêmico que nem tenta disfarçar. Porque já não posso mais suportar essa visão de mundo anacrônica do trono fálico dourado. Explodi porque já não posso mais suportar viver na sombra, invisibilizada, fingindo ser domesticada quando jamais me permitirei viver dessa forma.


Não importa se minha voz se ergue sozinha, se ela ecoa no microfone com ruídos de desprezo ao fundo. Não importa se eu preciso citar Wittig e Butler pra legitimar o meu “ataque histérico”. Nada disso importa porque eu não posso, não quero e não me proponho a ficar calada. Eu sei porque vim pra cá, eu sei onde pretendo chegar.


Depois de todo esse baphão, retorno a casa, tarde, louca, chapada, sozinha... escrevo pra organizar, pra extravasar. Eu ainda tenho muito o que me fuder... mas... o que é um peido pra quem tá cagado não é mesmo... se é pra morrer na guerra, que seja levando o maior numero de inimigos possíveis...


Agora dá licença, q eu vou chorar na cama... q é lugar quente...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

BUCETAS INSACIÁVEIS: de Sherazade a Valesca, mitos sobre a emancipação da mulher.



As mil e uma noites é um vasto livro que, através da biografia de Sherazade, que todos conhecemos, alinhava uma série de histórias tradicionais num fio contínuo que pretende, ainda que não explicitamente, remontar a fundação da sociedade sobre o controle repressivo de instintos como ganância e insaciabilidade sexual feminina. Dentre as muitas historietas, salta aos olhos a primeira, na qual Shahriar e Shezanã, dois ricos reis, descobrem ser traídos por suas incansáveis mulheres. Arrasados de ódio e humilhação, saem em viagem pelo deserto tentando buscar homem de pior sorte que a sua – isto é, saem em busca de algum que seja ainda mais atormentado pela natureza puramente sexual de sua concubina. Em dada altura, um gênio do mar, criatura maligna de imenso poder, aparece diante deles, que se escondem. À distância, todavia, observam que a criatura tem sob seu poder uma linda e rica caixa, onde guarda... UMA MULHER, sua concubina.
O gênio adormece, e a jovem, deslumbrante, convida-os a fazerem sexo com ela. Cumprida essa etapa, como troféu da sua conquista sexual, a mulher – que não tem nome – confisca um anel a cada príncipe, justificando da seguinte forma o confisco dos objetos:

São anéis de todos os homens a quem concedi meus favores, noventa e oito que conservo como lembrança. Pedi a vossos pela mesma razão, e para completar a centena. Eis, pois, cem amantes que tive desde o dia em que esse monstro me raptou, apesar da sua vigilância e das suas precauções. Pouco me importa que me encerre naquela caixa de vidro e me oculte no fundo do mar, porque nunca deixo de enganá-lo.

                A idéia de mulheres como seres psiquicamente achatados, movidos por uma lascívia exclusivamente heterossexual e simultaneamente invejosa e competitiva, está presente em toda a nossa cultura, moldando certamente a maneira como nos vemos individualmente, bem como a maneira como encaramos a sexualidade feminina. Isto é: a maior parte das narrativas que nos envolvem, que nos embebem, aborda a sexualidade não como um construto cultural regido por interesses políticos e relações de poder, mas como o controle ou administração de uma porção de desejo inata, dirigida para esta ou aquela manifestação sexual. Existe, portanto, uma equivalência entre uma determinada anatomia, uma identidade e um tipo de desejo; e nesta narrativa, a única liberdade possível é a liberdade sexual.
                Nossa grande liberdade: sair à caça. Vingar nossas vovozinhas reprimidas. Vamos armadas de minissaias e cílios postiços, pulando de cama em cama: quantidade se converte em sismógrafo da liberdade. Quantidade de homens: e o ballet da liberdade, tão mais bem executado quanto mais pirotécnica for nossa técnica orgástica. Precisamos desesperadamente deles: precisamos provar que nosso feminismo não é o paroxismo histérico freudiano, e para atender à inspeção masculinista que patologiza qualquer ato de rebeldia como falta de uma boa piroca, nós vamos a elas. É o nosso mantra: abrir a caixa de pandora e inundar o mundo com nossos fluidos corporais.
                Como se vê, o discurso sobre a liberdade sexual como algo que se restringe à variedade de parceiros, mantendo uma performance heteronormativa projetada para o olhar masculino, tem suas bases na antiguidade, e pode ser verificada em muitos outros mitos além de As mil e uma noites; porque o discurso patriarcal nos vê exatamente como essas criaturas cujo elemento é a pura luxúria. Aceitar isso como um dado e buscar liberdade sexual através dessa premissa não é contestar as relações de gênero como violentas, mas na verdade reforçá-las, reiterá-las, retificá-las.
                Quando, por essa semana, me veio aquela notícia já célebre da pós-graduanda que defendia os funks de Valesca Popozuda como feministas, não pude deixar de pensar todas essas coisas. Em primeiro lugar, porque é uma abordagem no mínimo anacrônica: dizer que, hoje em dia, falar de sexo ainda seja um tabu é um tanto deslocado da realidade. Vá às bancas de jornal, aos cinemas, no escritório do seu trabalho, na sala dos professores, é só do que se fala. Constantemente somos inspecionadas: o que, como, com quem estamos fazendo? Estamos tento suficientes orgasmos para validar nossa sanidade? Será que você não é feminista só porque é mal comida? Em segundo lugar: no primeiro volume de A história da sexualidade, Foucault já nos alertava para o fato de que, mesmo no passado, não havia uma proibição generalizada em relação a falar de sexo, mas uma regulação de como, com quem e onde falar dele; como, onde, com quem praticá-lo. Em terceiro lugar, as feministas radicais da década de 1970 (com seus prós e contras), já alertaram para o caráter institucional do ato sexual heterossexual como um lócus de poder, administração de identidade, e para o fato de que, quando procuramos sexo, não se trata da busca abstrata por uma sensação corpórea destituída de sentido mas, pelo contrário, da busca mesmo dos significados instituídos em torno de determinadas performances. E por falar em performance, Judith Butler e Beatriz Preciado já sublinharam o ato sexual como um ato performático, como a repetição reiterada e ritualizada, cristalizada em imagens e discursos, pelos quais determinadas práticas sexuais são construídas como naturais, e outras relegadas à abjeção.
                Digo tudo isso porque a diferença entre “Minha boceta é o poder” e o discurso milenar de As mil e uma noites é zero. A sexualidade é a forma de enganar homens para obter benefícios financeiros: onde está o feminismo? E a maneira de “fisgar” o macho se dá, simultaneamente, pela habilidade específica de fornecer prazer sexual ao homem, satisfazendo sua masculinidade predatória, e tornando-se bonita nos parâmetros racistas e machistas de nossa cultura, que incluem “Coloca silicone/ E faz lipoaspiração/ Implante no cabelo com rostinho de atriz”: isso é feminismo? Corroborar com uma cultura de adultério e medir o desempenho no ato sexual não pelo prazer obtido para si mesma, mas pelo quanto “eu esculacho a tua mina”: isso é feminismo? “Vou comer o seu marido” é questionar a monogamia? Porque me parece (e Beauvoir assina embaixo) que o adultério sempre foi uma parte institucional dos contratos monogâmicos através da história.
                E me parece que, num contexto mais amplo, produzir uma dissertação sobre como o funk de Valesca é feminista é reproduzir, no espaço acadêmico esse mesmo discurso: estou em dia com minha cota de orgasmos, meu pensamento já pode ser considerado ciência?

quinta-feira, 11 de abril de 2013

A incrível necessidade de falar sobre o véu – notas sobre apropriações discursivas



Por que as pessoas ainda falam sobre o FEMEN me é um completo mistério. Um grupo que se diz feminista e homenageia Margareth Thatcher por suas políticas neoliberais, ou ainda Hugh Heffman, criador da revista playboy, como um ferrenho partidário da emancipação da mulher, já deveria ser visto como desconfiança. Aliás, grupos que falem indistintamente em “emancipação da mulher” como se se tratasse de um grupo política, étnica, cultural e economicamente homogêneo que tivesse no horizonte uma solução unívoca para os seus problemas, devem ser encarados com um pezinho atrás, SEMPRE. Por fim, estou até pasma pelo fato de haver ativistas gordinhas entre as “louraças” da organização, visto que até pouco tempo atrás, magreza, lourice e branquitude eram pré-requisitos sem os quais não se poderia aderir à organização. Enfim, como eu disse: procurar sentido no FEMEN é pra quem tem muito boa vontade ou muito tempo livre, e eu não disponho de uma ou outra coisa.

O que importa é que recentemente, a organização fez um protesto pela “liberação das mulheres muçulmanas”, criticando o véu entre outros aspectos da cultura islâmica – o que aliás, é uma grosseria teórica, visto que islamismo não é sinônimo de muçulmano, e por aí vai. Como é de praxe, o FEMEN gera muito mais impacto negativo que positivo, pipocando instantaneamente, e nos dias conseguintes, ferrenhas críticas à postura colonialista e racista das moças e apoios incondicionais ao uso do véu. Para tanto, gostaria de tecer algumas considerações.

Não sei muita coisa sobre o assunto “véu”. O único caso que conheço de país islâmico onde o véu é obrigatório é o Irã, caso que conheci por um único livro, o Persépolis. Trata-se de uma autobiografia de uma menina que, por volta dos 7 anos, encontra-se no país quando acontece a “revolução” islâmica que leva Aiatolá Khomeini ao poder, juntamente a um grupo religioso radical. Marjani, que era apenas uma criança, vivera até então da maneira como a maior parte de nós “ocidentais” vive: estudava numa escola mista, vestia-se com roupas como as nossas, até que, após a chegada dos religiosos ao poder, o uso do véu se torna obrigatório, homossexuais passam a ser perseguidos, e sob a pena de as “mulheres” serem taxadas de imorais e sofrerem perseguições por isso, os casamentos voltam a ser arranjados pela família e, se não me engano, o divórcio se torna ilegal (essa parte do livro eu não lembro, posso estar errada, confiram aí por mim!). O Irã era um país laico, portanto, até 1979, e o uso do véu como obrigação do Estado, antes disso, era impensável. Também o Afeganistão era um país laico até a chegada do grupo Talibã ao poder e, da mesma forma, só então o véu passa a ser uma obrigação legal. Quanto à Marjani, só pra constar, não vive mais no Irã.

Isso serve para pensarmos a maneira como o ocidente pensa o “oriente”: é o que Edward Said chama de orientalismo, e que Stuart Hall aborda em Da diáspora e Identidades culturais na pós-modernidade. Em geral, o ocidente capitalista tende a tratar “O Oriente” como um grande ente exótico e homogêneo, culturalmente insular, tão externo e alheio a nós que caberia a nós, ocidentais, apenas a alteridade completa, a admiração. Daí surgem alguns fetichismos que resumem culturas diversas e complexas a um conjunto de signos convenientes à leitura ocidental, como reduzir a cultura islâmica ao véu, ou a cultura indiana ao politeísmo, como se as culturas não-ocidentais fossem um reservatório de tradição pura e sempre igual a si mesma ao longo do tempo, como se se pudesse traçar uma linha reta partindo do presente ao seu passado mais recôndito, como se as culturas não-ocidentais encontrassem-se todas em um estado original, cristalizado e puro. Isto se realiza, por exemplo, na leitura liberal do hinduísmo, que coloca este conjunto de crenças num estado de “verdade” e de “proximidade com Deus”, ou na leitura de que as tribos autóctones, por disporem de um modo de vida que agride menos o ambiente onde se encontram, quase não dispõem de cultura, vivendo num estado quase natural. Opondo-se a esse oriente místico, logo, temos um ocidente caótico marcado pela distância entre homem (sic) e natureza, tanto quanto pela distância entre homem (sic) e Deus, construindo-se duplamente um ocidente homogêneo, capitalista, marcado pelo desequilíbrio e relações de poder, em oposição a um Oriente pacífico, estável, e cujas culturas não apresentam tensões ou relações de poder em seu interior.

A utilidade dessas teorias, pois, não é pensar o Oriente, mas pensar como o Ocidente constrói o Oriente discursivamente a partir de relações de poder, quais são e para que servem essas apropriações discursivas, por parte do capitalismo. Por que é tão importante, para nós, falar do véu? Acredito que falar do véu tenha, em oposição ao que postula o senso comum, uma importância muito maior na veiculação de idéias às mulheres ocidentais do que propriamente um embate cultural com outros países.

Em primeiro lugar, em sua maioria, os discursos anti-femen e pró-véu trabalham com “mulheres” como uma categoria biológica. É muito precipitado dizer que há mulheres em outras culturas, exatamente porque a categoria mulher é uma assinalação biopolítica atribuída a um corpo que, a partir de uma série de dispositivos culturais de assujeitamento e subjetivação, têm como horizonte a produção de corpos dóceis capazes de se engajar em atividades sexuais, laborais, reprodutivas, estéticas, etc etc. A categoria mulher (cis, no caso), na acepção que luto para afirmar, é, pois, uma produção cultural muito específica, e que não necessariamente aparecerá em todos os arranjos sociais entre seres-humanos. Formular frases como “as mulheres dos países islâmicos” pode, pois, ter duas acepções possíveis: 1) que existam pessoas com vaginas nos países islâmicos, donde se conclui que sua concepção acerca de gênero está vinculada a um discurso médico profundamente reacionário que pressupõe a opressão de gênero como algo que tenha suas origens na biologia e, que como dado do Real, é imutável; 2) você concebe que, mesmo em outra cultura, ainda existe uma relação de poder tal que a sociedade seja radicalmente dividida entre os seres dotados de pênis e seres dotados de vaginas (intersexuais, por exemplo, estão automaticamente excluídxs), e que mediante seu papel reprodutor, laboral, sexual, estético, etc etc, os seres humanos desse lugar são subjetivados como mulheres. E nesse segundo caso, não há maneira de negar que homens e mulheres vivam numa situação de desigualdade e que o avesso desse binário sejam corpos condenados à abjeção.

Algo que Hall, negro e jamaicano, frisa sobre o exotismo atribuído pelo Ocidente ao resto do mundo, é o fato de que todas as culturas e tradições são frutos de tensões, de assimetrias no poder, de disputas políticas, de modo que não se pode falar em tradição como algo que remonta ao passado, retirando daí sua legitimidade, mas algo que diz respeito a um conjunto de narrativas sobre o passado, leituras, apropriações e deslocamentos de hábitos e costumes, que têm por meta tanto a coesão social de um grupo, como a manutenção (ou contestação, dependendo do caso) das relações estabelecidas no interior desse grupo. Defender o véu sob a premissa de que “é uma tradição” não tem por objetivo qualquer relação com o véu, mas defender que são as tradições, ou seja, a persistência no tempo, que levam um hábito a atingir o status de legítimo. Defender o véu, repito, é defender o discurso da tradição como aquilo que se perpetua no tempo por alguma espécie de utilidade, de legitimidade ou de força, e que o fato de um hábito ou objeto “atravessar o tempo” é motivo suficiente para que o deixemos como está.

Não existem, por isso, culturas puras, já que a cultura é sempre fruto de deslocamentos e negociações internas. Além disso, estamos falando de um capitalismo integrado por meios de comunicação de rede e de massa, pelo fluxo de mercadorias, pessoas e signos, de apropriações e ressignificações. Estamos falando de burkas fabricadas na China, de muçulmanos que comem hambúrguer e ouvem Britney Spears. Num contexto de tantas mudanças, por quê é o corpo da “mulher” o lócus tão privilegiado da manutenção das tradições? Por outro lado, por quê é o véu a tradição privilegiada da crítica liberal?

Quanto à primeira pergunta, cabe às mulheres de lá responder, e não a mim. Quanto à segunda, eu tenho um palpite. Num momento histórico em que há uma bancada religiosa que se coloca no Estado como representantes de suas crenças, e não como empregados da máquina estatal (não que eu concorde com a democracia burguesa, vejam bem), é muito importante veicular mensagens tais como “o uso de véus não é uma opressão”, ou “o apedrejamento de mulheres adúlteras e homossexuais não é um problema, mas outra cultura que devemos respeitar”, ou ainda “uma mulher que afirma ter sido estuprada deve levar 100 chibatadas e casar com seu estuprador”. Porque estamos falando de pessoas que defendem uma “jesuscracia” que adorariam ser vistos apenas como uma cultura, um inocente e trivial arranjo de seres-humanos que não se pauta em relações vívidas de poder mas em tradições puras, legítimas e cristalizadas, que não cabe criticar, mas admirar em sua plena “outridade”.