domingo, 17 de abril de 2011

Clarice

, não é mesmo? Afinal era domingo. Um domingo morno. Tão morno quanto o livro que, a essa altura, já se encontrava caído sobre seu peito enquanto ela dormia no sofá.

Mas não era um sono morno, desses de domingo. Era um sono alterado, um sono consciente. Ela sabia-se estirada no sofá, sentia as almofadas percorrendo a forma do seu corpo, e o livro pesando levemente. Achou aquilo estranho, o tato das almofadas e do livro, assim como o tato de suas próprias roupas. Sem precisar se esforçar muito foi capaz de se concentrar ainda mais naquela sensação do tato e levá-la a um nível desconhecido.

E nesse instante foi invadida por uma sensação já familiar, a de estar rodando. Sentiu-se girar na vertical, como se tivesse sido transportada para um brinquedo de parque de diversões. Será que estou saindo do corpo? Se eu abrir os olhos agora, será que estarei flutuando sob meu corpo adormecido no sofá? Mas ela não abriu os olhos, não foi preciso. Podia sentir o mundo a sua volta, não precisava vê-lo.

Sentiu que flutuava. Sentiu que se aproximava da maçã que descansava na fruteira em cima da mesa de jantar. E a medida que sua consciência tocou a maçã, foi transportada para seu corpo. Agora eu sou a maçã. Uma maçã não muito vermelha, que repousa na fruteira a espera da primeira mordida. Mas como descrever o ser maçã? A maçã não tem visão, tampouco audição. Sentia uma vibração interna, um caroço que pulsava, uma nova vida que jamais brotaria. Sentiu a tristeza que vinha de dentro, sentia o veneno que vinha de fora. O veneno que já fazia parte de sua composição e, de repente, se deu conta que seu caroço era deformado, defeituoso, aleijado... Ele trazia o veneno incrustado em sua composição.

Uma brisa entrou pela fresta aberta da janela. E a medida que sua casca era banhada por essa brisa foi-se deslizando para fora da maçã. Agora fazia parte da composição do vento. Bailava serena pelo ar, cabia em todos os lugares, todos os cantinhos. Podia passar através das menores aberturas. Esvoaçante seguiu pela fresta da janela, sentia que ia se expandindo, ocupando todas as esquinas e avenidas. Mas foi tomada pelo mesmo veneno que parecia assolar a maçã. De onde isso vem? Por que me toma dessa forma? Sinto-me doente, fraca, suja...

Um pássaro a cortou com suas asas aerodinâmicas. Imediatamente sua consciência foi transferida para aquele corpo plumoso. Agora podia sentir o ar sob suas penas, dava impulso e voava mais alto.   Planava e a brisa era uma caricia gostosa e fresca. A medida que se sentia mais confiante começou a dar mais uns rasantes pelas ruas. E nessa brincadeira se deparou com uma superfície lisa onde haviam seus semelhantes. Voou direto e bateu o bico com força. Caiu levemente desorientada. Suas perninhas frágeis logo a sustentaram. Olhou para cima e viu seus irmãos presos em gaiolas. Meus irmãos encarcerados, penas e plumas perfeitas que já não podem voar, já não podem sentir o vento bater e planar lá no alto. Eu queria ser uma ave de rapina, quebraria essas grades com meu bico afiado.

Ela voltou a se sentir girar. Girou na vertical, girou e girou... Se ouviu. Era um pio forte e potente, abriu os olhos e pode ver mais longe do que jamais pensou ser possíveis. Abriu as asas e tentou voar. Sentiu algo apertar suas patas. Mas até assim? Pegaram meus irmãos menores, a mim também? Como poderei lutar? E uma tristeza invadiu seu corpo.  Viu uma arvore lá no alto da colina. Talvez se eu fosse uma árvore. Fechou os olhos e foi.

Sentiu tudo se transformar. Mais uma vez seus sentidos se modificaram. Agora era a consciência da árvore. Sentia a energia do sol em cada folha, sentia o ar em cada poro, sentia a terra abraçando suas raízes. E o veneno voltou a invadir seu corpo. A terra era úmida e pesada. O ar era quente e denso. Mas será possível? Está tudo envenenado?

Escorregou pelo corpo, até a base do caule, onde havia um pequeno cogumelo. Se infiltrou para aquela consciência. Entrou por aquele corpo de frutificação e logo sentiu-se expandir. Como corria por debaixo da terra... Para onde será que vai? Mas o veneno não lhe abandonou. Já não suportava sentir a doença, estava ficando fraca.

Escorregou mais uma vez. Dessa vez para a terra. Nesse momento a consciência se expandiu com uma rapidez incontrolável. Correu por toda terra, sentia o lençol freático, as raízes que lhe penetravam, as minhocas, os pequenos insetos, as folhas que caiam, os químicos que lhe invadiam. É daí que vem? Mas a consciência corria, corria na velocidade de um jato. Foi além, além dos oceanos, que pesavam sobre ela. E já não podia parar, puxara um gatilho sem volta. Correu, correu tanto que as pequenas coisas começaram a se perder. Já não era somente a terra, era toda a Terra. Mas por que ainda me sinto doente? Os químicos não ficaram pequenos? Sentia-se presa, compactada, queria sair dali, abandonar esse corpo doente.

Fez força para romper a casca e poder sair. Nesse instante apareceu um flash de seu corpo estendido no sofá, a TV ligada e as imagens de um noticiário, uma imensa onda invadindo um litoral. Será que eu ainda estou dormindo? Eu quero acordar. Não quero ficar presa. Outro flash, agora a TV mostrava uma cena de guerra. Será que eu dormi com a TV ligada? Mas eu estava lendo um livro... Outro flash, agora eram imagens de pessoas famintas, desnutridas. Preciso sair, já não posso respirar. Já não conseguia escorregar sua consciência para fora. Por quê?

Quanto mais força fazia mais forte ficavam as imagens de destruição na sua televisão. Ela começou a se questionar se estaria mesmo dormindo, ou se sonhara que fora um corpo estirado num sofá. Aos poucos o frenesi foi passando, e a dor também. Talvez o sonho tenha sido que fora uma mulher que adormecera lendo um livro, ou quem sabe apenas uma lembrança de uma consciência que já ficara há muito no passado. Agora só sentia o universo lhe envolvendo, que...

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