terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Consentir a enfrentar o machismo nosso de cada dia

Essa coisa de consentimento é realmente tensa. Na minha vida pelo menos, sempre foi. Eu, como a maioria dos seres q veio ao mundo com vagina, útero e ovários, fui educada a sempre consentir. Acho q dispensa maiores explicações. Mas acho q sempre tive uma veia na discórdia. Nunca aceitei engolir coisas q me desagradavam. Me lembro aos 15 anos, um namoradinho de escola me recriminando um dia pq coloquei uma saia curta, disse q eu não iria sair com ele se não trocasse de roupa, ao q eu prontamente assumi q significada sair sem ele... Saí andando e o deixei parado no portão com cara de taxo, ele demorou um pouco pra entender... Sempre fui mto de falar, de deixar tudo mto claro. Quem me conhece sabe q transparência é uma marca minha.

Nesse meus caminhos por feminismos e afins já andei remexendo mta coisa lá no fundo de mim mesma. Mas algumas coisas ainda são meio obscuras, me parecem ainda meio sem resposta... Eu olho e me sinto meio perdida. Como vou lidar com isso agora? E essa do consentimento é uma delas. Eu gosto de me relacionar sexualmente com homens. Não q eu não me sinta atraída por outras formas e outros corpos, veja bem. Mas eu tb gosto de homens, e isso, em mtos momentos me é bastante problemático. Pq essa coisa de homem feminista... olha... sinceramente... eu tô colocando no rol dos seres mitológicos... junto com unicórnios, sereias, centauros, duendes, deuses e diabos... Já andei rodando entre homens anarquistas, veganos, e com mais uma meia duzia de rótulos q faz tudo parecer bonitinho... Ele começa a citar Emma Goldman e eu fico lá achando q talvez ele tenha o discurso da boca pra dentro tb.

"Encare o fato de frente", eu tenho repetido a mim mesma. O mundo é machista! Ponto. Eu sou machista. Todo mundo é machista. O fato é q a grande maioria de nós avança, desconstrói um tanto de coisas, mas ninguém é capaz de fazer tudo... de modificar tudo... e eu fico ali, olhando pros meus escombros, tentando entender o q levantar no lugar. E me lembro de uma frase de uma prof feminista certa vez, q ouvi através de uma prima e amiga q era sua estagiaria. Ela dizia "onde vc guarda o seu machismo?". Nunca me esqueço. É isso mesmo. Temos q encarar q somos todos machistas e seguir na luta pra desconstruir o q ainda resta pra podermos erguer coisas novas no lugar. E eu ando chegando a conclusão mto séria, q esses homens, seres fálicos, penianos, guardam seus machismo no ato sexual!

Já andei tento algumas experiência controversas com esses moçoilos. Mas recentemente teve um q me deixou bolada. Bolada de verdade. Eu conheço o cara faz alguns meses, nos conhecemos aí pelos movimentos sociais da vida. Esse mesmo padrão: anarquista, fala de teoria queer com desenvoltura... a coisa foi se desenvolvendo naturalmente, ninguém precisou apertar nenhum botão pra q um dia a gente chegasse a conclusão de q ia rolar sexo. Logo de cara ele tentou colocar o dedo no meu cu.

NOTA: eu não curto coisas no meu cu! Esse assunto já andou rolando por aqui. Para relembrar vejam: http://coletivocaju.blogspot.com/2011/08/cocozinho.html

Bom, eu deixei claro pra ele q não estava gostando. Ele fez uma cara de quem está levemente desapontado, mas parou e nós seguimos em frente. Ok. Num outro encontro lá vem ele novamente. Eu, naquele momento, parei e disse com todas as letras q não gostava e não queria q ele fizesse novamente. Ele riu meio com ar de quem pede desculpas, eu fiquei levemente bolada, mas acabei deixando passar. E assim começaram pequenas investidas da parte dele, todas em tom de brincadeira... até q um dia, umas 2 semanas depois da gente ter começado a se envolver, lá vai ele novamente com seu dedo. Foi demais. Parei tudo, já puta da vida, e falei "qual foi a parte do eu não gosto disse q vc ainda não entendeu?". Ele me olhou meio sério e perguntou "pq? doeu?"
Eu: não doeu, não sinto dor, simplesmente não tenho prazer
Ele: vc está insegura?
Eu: eu já te expliquei q não me sinto insegura, q só não curto. O q q ta difícil de entender?
Ele: eu acho q vc ta insegura
Eu: vc ta dentro do meu corpo ou da minha cabeça pra saber como eu me sinto?
Ele: não
Eu: então! A única forma q vc tem de saber como eu me sinto é através do q eu te digo q sinto, e eu estou sendo bem clara
Ele: mas é q isso é algo q me da prazer, em mim, no meu cu
Eu: e o seu corpo funciona igual ao meu?
Ele: não
Eu: então pronto! Acho q vc já tem sua resposta, né… ou eu ainda preciso explicar?

Nessa hora ele ficou meio puto e disse q talvez isso inviabilizasse a gente de ficar junto. E eu questionei "o fato de eu não gostar de dar o cu inviabiliza a gente ficar?". Ele disse "talvez". Eu fiquei puta. Aí eu falei q se tinha tanta necessidade de comer cu q o mundo ta cheio de cus q gostam de ser comidos. Pq o meu???

Nessa hora eu entro no retrospecto da minha vida sexual e conto nos dedos de uma mão, e não preenchem todos os dedos, os homens com quem me relacionei q não fizeram pressão pra comer meu cu, mesmo eu já havendo deixado bem claro q NÃO GOSTO!!

E aí entra a nóia de quem foi educada para consentir. A pressão é tão grande q eu acabo entrando numa vibe de me questionar se eu não estou errada de alguma forma. Mas não naquele dia, não depois de tanto q já avancei aqui com as minhas desconstruções. Talvez no passado, talvez com outros caras. Tive um namorado certa vez q TODA vez q tínhamos relação ele insistia, pedia, quase implorava. Certo dia eu bebi demais e lá foi ele. Eu, meio alterada, na hora não contestei, lembro de pensar "sei lá... vai q hj é diferente". Mas não demorou pra voltar aquela sensação de cagar... Eu fiquei ali alguns minutos me convencendo de q eu não estava cagando, não ia sair merda... Até q não deu e pedi pra parar... Mas naquele dia eu já sabia a resposta, já sabia q não era eu quem estava errada, já sabia pra onde ele, pseudo-libertário, tinha varrido seu machismo.

Naquele dia fui dormir puta. No dia seguinte conversamos. Eu disse "vc quer uma coisa q TE dá prazer e eu TENHO q aceitar? pq? pq vc é o homem e seu prazer vale mais?" e ele ficou calado e por fim disse q talvez eu tivesse razão e q ninguém nunca apresentou as coisas pra ele assim. Naquela hora cheguei a ficar sem reação. Como assim ninguém nunca te apresentou as coisas dessa forma?? Como assim vc anda por aí com esse cabelo desgrenhado e essas camisetas com frase de efeito, lendo livros subversivos, e é incapaz de subverter suas próprias relações? Com que tipo de pessoa vc se relacionou até hoje?

Mas a verdade é q eu fui incapaz de fazer todas essas perguntas naquele momento. Essa conversa voltou a tona em outros momentos. E eu cheguei a dizer a ele, com todas as letras, q o q ele estava fazendo chama-se ESTUPRO!! "Não consigo entender como vc é capaz de sentir prazer sabendo q a outra pessoa não está, sabendo q a outra pessoa está bastante desconfortável com a situação. Essa É a lógica do estuprador!!"

Sim! Essa é a lógica do estuprador! Eu repito!

Não estou aqui, de forma alguma, dizendo q mulheres não sejam capaz de abusar. Mas minhas experiencias com mulheres, pelo menos até hoje, sempre foram muito diferentes. Elas parecem mais atentas, mais preocupadas. Não posso falar por todxs, mas eu, pelo menos, não consigo pedir a alguém para fazer algo, mesmo q seja algo q eu goste mto, se sei q a pessoa estará em profundo desagrado. Acho q sou incapaz de sentir prazer nesse tipo de situação.

Uma coisa é você dizer que, mesmo que algumas práticas não se configurem como suas preferidas, elas são válidas para satisfazer x parceirx. Outra é exigir q x parceirx se engaje numa atividade da qual não só não goza como repudia.

É, com algumas pessoas, certas posições e práticas não vão rolar. Não, isso não é um problema. Fique atento: a mídia vende para nós a ideia de liberdade sexual como algo que pode ser medido, tanto pela quantidade de sexo, quanto pela de parceiros ou pelo número de práticas que você topa. Isso não é liberdade, pelo menos não como eu entendo...

O que acontece nessas situações é muito simples: homens brancos revoltados com a perda de um de seus maiores privilégios, que é dispor dos corpos e dos "corações" (por falta de palavra melhor) das mulheres. É muito fácil para o homem se rebelar contra o que quer que seja: o sistema inteiro está dizendo que o mundo é de vocês por direito! Seja o Deus cristão, seja a biologia positivista, vocês estão acostumados a discursos que lhes delegam não só o poder sobre o planeta como sobre a maior parte da espécie humana - tudo que não seja branco, homem e heterossexual é de vocês para dominar, segundo nossa sociedade. Então, esse homem a quem tudo foi legado se vê, por exemplo, numa sociedade de classes em que outros homens (burgueses, por exemplo) lhes negam poder, e então se revoltam contra seus opressores. Fácil se rebelar.

O difícil é superar o paradigma iluminista que estabelece a SUA subjetividade como o parâmetro da razão. Difícil é perceber que SIM, VOCÊS SÃO OPRESSORES. Sua mera existência está implicada em relações de poder: o fato de você poder andar na rua 2 da manhã sem se perguntar se vai ser hoje que você vai ser estuprado e morto já torna a sua visão de mundo radicalmente diferente da minha. NÃO, CARA, VOCÊ NÃO ME ENTENDE. Quer as boas notícias? Para me entender, você vai ter que negar a lógica de poder que te beneficia. Quer a boa notícia? Para você me entender, entender minha opressão, entender minha vida, entender meu corpo, você só tem uma coisinha a fazer: ME OUVIR. Ouvir com alteridade, ouvir com a compreensão de que a sua visão de mundo não é pura nem universal, mas subjetiva e pessoal, e que você tem que ouvir mulheres, gays, lésbicas, trans, negrxs, e outros, para entendê-los.

Negar a lógica do poder, construir um consentimento verdadeiro é OUVIR SEM LANÇAR SOBRE O OUTRO O SEU OLHAR COMO SE FOSSE ISENTO E UNIVERSAL.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Sexo biocentrado y otras cositas más

Como muitas reflexões na minha vida, esta começou na cama. Aliás, naquilo que elogiosamente chamávamos de cama, mas não passava de um colchão de casal largado no chão do quarto. Maravilhoso e fedido colchão, brindado de suor, umidade e, quando em vez, água da chuva, posto que tínhamos por companhia uma goteira que minava no exato centro do quarto - o acaso também tem seus caprichos geométricos. A reflexão começou motivada pelo meu ex-namorado F. (quem conhece sabe), com quem eu tinha um sexo genial.

Com ele comecei a achar o sexo algo tosco. Vejam bem, sem a conotação negativa, eu achava sexo algo rudimentar. Achava que não estava explorando todos os recursos e sensações do corpo, ou mesmo que havia outros prazeres mais interessantes no mundo. Sobretudo, comecei a desconfiar dessa definição de sexo como ato, ou atuação, do corpo, ou das genitálias. Beijo não é sexo? Masturbação É sexo? Estupro é sexo? Visita ginecológica é sexo? Por que sim, por que não, por aí vai.

O sexo era bom, bom de verdade. Fazia uma sujeira e tanto, uma bagunça de porra, suor e, às vezes, sangue. Numa noite qualquer, antes de partirmos para a barbárie (o canto indisciplinado dos pássaros) ele me faz a pergunta: "você já fez amor?". Muito prosaica, de uma humildade envergonhada, eu respondi que não - verdade. Em seguida, F. apagou as luzes, lentamente tirou minhas pulseiras, anéis, brincos, um por um. Lentamente. Em dirigível cruzava minha mente carregando uma imensa faixa, na qual se lia "que porra é essa?". Depois de totalmente despida, ele, que não estava totalmente despido, me deitou, e começamos a transar de vagar. O que era uma experiência nova, agradável, mas que eu não conseguia associar com o amor. À qual eu não consegui e não consigo agregar nenhum significado além de "transar de vagar".

Comecei a entender o sexo como performance nesse dia. Comecei a entender que, durante o sexo, não se abrem comportas para acessar nosso lado animalesco, tampouco portas da percepção que coloquem os espíritos em comunhão profunda e maravilhosa. A coreografia do sexo - movimentos, gemidos, maneiras de se tirar a roupa - é tão culturalmente inventada quanto o ballet, embora não pelos mesmos métodos. Assim como recorremos a determinada entonação para implicar um significado a um enunciado qualquer, no sexo quesitos como velocidade, intensidade, força, gemidos, são signos filiados a mensagens; um sem-número de mensagens customizáveis e criativas, mas ainda assim, mensagens.

Pensei nisso tudo outra vez quando vi o filme Crash, do David Cronemberg, neste fim de semana. Rapidinha sobre o filme: após um acidente de carro, James Ballard tem sua perna severamente danificada, e passa algumas semanas em um hospital. Sua perna comprometida passa esse tempo cravejada de pinos a parafusos que mantém os ossos no lugar durante a cicatrização. Neste mesmo período, conhece Dra Helen, em cujo carro batera, e também o exótico Vaughan - disparado, o melhor personagem do filme. Vaughan tem profunda atração sexual por pessoas acidentadas, pinos, parafusos, cicatrizes, bem como pelos próprios carros, pelas batidas em si. James, o protagonista, entra em uma espécie de submundo sexual de pessoas com preferências muito parecidas, e que envolvem sempre corpos humanos modificados pelos acidentes.

Digo modificados não por eufemismo, mas por conta das minhas reflexões. Em primeiro lugar, somos todos corpos modificados, aqui. Somos todos corpos antropomorfizados naquilo que o ocidente concebe como humano: cortamos as unhas e os cabelos, tingimo-los, depilamos nosso púbis em formas geométricas aleatórias (não é?)... Tatuagens, piercings, silicone e botox são apenas aqueles que nossa sociedade elencou como "modificações" no intuito de encobrir que, na real, o corpo reivindicado pela nossa biologia positivista também é um investimento cultural. E os corpos acidentados, a quem "faltam" uma perna, um braço, um determinado movimento, ou que "portam" cicatrizes, não são incompletos, aleijados, nem em nenhum grau menos humanos que os demais.

Vaughan, o tarado (no melhor sentido!) em acidentes, afirma que vê os acidentes de carro como atos sexuais nos quais não só os envolvidos, mas toda a espécie humana está sendo modificada. Estamos sendo transformados pelas máquinas, ele diz, e acho que não poderia haver uma iconoclastia maior ao sexo bio-centrado. As máquinas não são o suporte do sexo (o carro como motel ambulante) tampouco são coisas "envolvidas no sexo",mas são partes ativas de um corpo humano que sempre foi tecno-simbolicamente investido. Acho que a cena mais famosa (inclusive citada por esse site como uma das mais broxantes da história) acontece quando Gabrielle, uma pessoa severamente modificada por um acidente de carro, seduz James, o protagonista. Fica claro que os aparelhos que usa na locomoção são parte da sedução, bem como as cicatrizes, que geralmente fazem parte do léxico do grotesco, são turn ons para o ato sexual. Os utensílios e as cicatrizes participam do sexo, porque não se tratam de "coisas que pertencem a Gabrielle", mas "coisas que compõem, que são a própria Gabrielle".

O sexo biocentrado tem uma função importante na fabricação do gênero; visto que a identidade não é categoria, mas devir, visto a identidade não como particularidade emanativa, mas atividade na qual um ser-humano se engaja (conscientemente ou não, o que já é outra história), apagar a fronteira bio-cêntrica do corpo é mexer diretamente com a dicotomia homem/mulher. Em um exemplo 100% hipotético: se eu nasci com útero, vagina e ovários, mas me identifico como homem, e se me sinto bem usando um dildo durante o sexo, então meu dildo de plástico, fabricado em série, é meu pênis. Organicamente pode ser que ele não participe do meu corpo; porém, subjetivamente, ele me integra. Percebo-o como parte de mim, ao menos no sexo. O que, diga-se de passagem, ainda é levemente bio-centrado, já que o dildo imita a forma do bio-pênis. Mas digamos que, por algum motivo esdrúxulo, eu só consiga transar de luvas... ou melhor ainda, se eu só consigo transar virtualmente, isto é, se só consigo manter relações via internet nas quais os corpos não se tocam. Isso ainda é sexo? Estou fazendo sexo com a outra pessoa ou estou sozinha? Ou estou trepando com o computador?

Por fim, assim como a coreografia sexual é simbolicamente investida, conotada, as modificações corporais também são. Relembrando a polêmica dos pêlos, todas as modificações corporais nada mais são que a adição de signos ao corpo: signos de gênero, de classe, de orientação sexual, de raça, etc. Ausência de pêlos, no momento, é signo de feminilidade, bem como envernizar as unhas com cores aberrantes, ou redesenhar os lábios com tinta oleosa. E todas são modificações tecnológicas, por mais simples que essas tecnologias nos pareçam. Acho que muita gente que se incomoda com travestis e transexuais está, na real, abalada em sua fé em um corpo natural, "biológico", na medida em que são confrontadas com a possibilidade de fabricar corpos masculinos ou femininos a partir de corpos a que, culturalmente, esses gêneros não são atribuídos. As mesmas tecnologias que (hoje) me tornam mulher estão ao alcance de uma pessoa XY, com um pênis e uma bolsa escrotal "saudáveis".

Mas aí eu acho melhor parar... e quem sabe chamar a Dorothy para dar uns pitacos.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Pentelhos para quem precisa...

Postar imagens é apostar em uma nova maneira de usar o blog. Francamente, ao postar a imagem abaixo, eu não esperava nenhuma grande repercussão... e qual não foi a minha surpresa diante da polêmica gerada, não aqui, mas no facebook, onde o link foi divulgado. Então, aproveitando esse novo "formato", organizei este post em imagens que, acreditem, deu muito MUITO trabalho.

Em primeiro lugar, recadinho aos moços que se manifestaram: muito me surpreende que os senhores, ao "prestarem contas" do que fazem com seus pentelhos (são pentelhos, não são?), se coloquem em pé de igualdade com as mulheres, como se sofressem as mesmas pressões em nossa sociedade. Novidade para vocês: mulheres (pessoas com útero, ovários, ou com XX em seus cromossomos) são 50% da população, 70% da classe trabalhadora e, ainda assim, detêm apenas 1% da riqueza do mundo. Nós somos mais estupradas, nós somos, em alguns lugares do globo, trocadas por vacas e cabras, o tráfico de seres humanos trafica principalmente corpos como os nossos e gira em torno da exploração sexual desses corpos. Nós, mulheres, ainda temos dificuldade em chegar a cargos de chefia, somos mais de 50% das pessoas ao ingressar na graduação e bem menos de 50% a realizarem mestrados, doutorados e outros estudos especializados. Portanto, amigos, não venham falar dos seus pêlos, ou do que quer que seja, como se vocês estivessem sofrendo uma pressão sequer parecida com a que sofremos. Sério, parem com isso.

Esta foi a imagem da polêmica. A maior parte dos comentários girava em torno da questão da higiene: que pêlos suam, acumulam sujeira e seriam, de alguma forma, uma ameaça à saúde. Duas coisinhas: 1) Eu tenho pêlos nas axilas e até agora não passei por nenhuma doença ocasionada pela sua presença; 2) Nunca ouvi ninguém alegando que cabelos na cabeça são anti-higiênicos...

Bom, comecei a pensar, muito em virtude dos comentários masculinos, o que os homens são orientados a fazer com os seus. Fui Às revistas masculinas do meu irmão (Alfa, Playboy, Sexy) e, em mais de 30 revistas, não encontrei NENHUMA axila, NENHUMA orientação quanto ao que vocês, mocinhos, devem ou não fazer com elas... E sabem por que, rapazes? Mui simples: as axilas de vocês são assunto DE VOCÊS, da ordem privada e pessoal. Não, a nossa cultura não está interessada na administração dos SEUS pêlos. Deal with it, meus queridos, a opressão que nós sofremos, muitas vezes por pressões estéticas (sim) de VOCÊS, não tem mão dupla NÃO.

E veio aquela dúvida: então, como é que as pessoas vendem desodorante para homens? Como são as axilas dos homens dos anúncios impressos (foi onde pesquisei)? Simples: comerciais de desodorantes masculinos NÃO TÊM HOMENS!!! Vejam só:


Neste anúncio de Axe, o produto usa como suporte de vendas a imagem da mulher. Se você feder a Axe, prometemos a você que será capaz de comer esta linda mulher, quer você, homem, tenha pêlos nas axilas, quer não.

Agora, que tal darmos uma olhadinha em um anúncio de antitranspirante para mulheres?


Quanto à mulher, o anti-transpirante precisa DEIXAR que saiamos de casa. Veja bem, até um produto de "higiene" tem o poder de legislar e decidir por nós. E qual é a condição para podermos sair de casa? Temos que estar assim:

Axilas maravilhosas = axilas nuas. Aliás, reflitamos um pouquinho de nada sobre a frase "axilas maravilhosas mesmo após a depilação"; quem se depila ou depilou SABE que é um processo doloroso e violento, seguido de vermelhidão, irritação, e sabe-se mais o que. Mas, UFA, Dove está aqui para resolver esse problema.

A questão dos pêlos, pelo que estou entendendo, está diretamente relacionada ao trânsito do corpo "feminino" no espaço público. Ao que parece, o avanço da mulher em campos histórica e culturalmente assinalados como masculinos faz com que tenhamos que fabricar a diferença dos gêneros sobre os nossos corpos, reafirmando a fronteira "homem/mulher". O que nos leva à reflexão: se nós somos naturalmente lisinhas e macias, por que existe uma bilhonária indústria cosmética que manipula nosso corpo para que sejamos assim? Até que ponto existem sexos como definidos na biologia, e até que ponto nós fabricamos, nós "sexuamos" esses corpos?

Muito bem, para quem está cansado de falar de sovaco: eu estou também! Falemos de pernas, então:


Nunca ouvi falar de homem raspando a perna, e muito menos que pernas cabeludas são anti-higiênicas (vale o comentário, as minhas são muito limpinhas). Neste anúncio lemos "do banho para a festa", ou seja: a condição para ir a público é ter pernas bem macias e lisinhas, à custa de um instrumento cortante.

Muita gente já notou que lâminas cortam, machucam, pinicam, enfim, que lâminas agridem o nosso corpo. Boas notícias, galera: os empresários notaram também. E sabe qual é a solução? CERA! CERA NAS MENINAS!



"Se lâmina fosse uma coisa delicada, os homens não usariam para fazer a barba"... hum, e cera é uma coisa, assim, MUITO delicada, né? Então, a agressão no corpo do homem é um signo de virilidade enquanto, no corpo da mulher é um agente feminilizante? Eita, cultura coerente!

Os anúncios são abundantes, esse post ficaria maior ainda se eu colocasse todos aqui. Então vou encurtar a conversa logo para os finalmentes: você pode estar pensando em argumentar que essas mulheres só estão lindas e depiladas porque são anúncios de produtos voltados para esse fim. Mas eu desafio você a encontrar um anúncio de WHATEVER em que uma mulher esteja com seus pêlos no lugar.

Enquanto isso, no mundo mágico e maravilhoso dos homens, o que nós vemos é:


Tirei essa foto de uma CARAS... um socialite exibindo pêlos na cara, pêlos nos braços, e grandes e grossas pernas cabeludas bem em primeiro plano! Agora vai lá, e procura se aquelas moças cheias de botox e silicone têm ALGUM pêlo na superfície corporal, além é claro de grandessíssimos, alisadíssimos e louríssimos cabelos no alto da cabeça.

E vem falar pra mim que a opressão é igual? AFFFFFF

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Sonhos infantis

“Aquela menina
tão pequenina
quer ser bailarina [...]”

Quando foi que começaram a me moldar mesmo? Não consigo mais recordar quando eu era ainda forma e quando já tinha barro, quando secou... nem sei dizer se cheguei a ir ao forno por assim dizer. De repente me deparei com essa escultura já meio pronta, sem saber direito em qual prateleira caber.

Quando forço um pouco lembro dos flashs de tinta fresca dando os retoques finais. Que cores eu queria ser? Que brilho eu queria ter? Acho que ainda mal havia entendido que podia ser pintada quando já me haviam coberto toda a superfícies com traços que nunca foram meus.

Mas eram esses traços, essas cores, essa forma que me definiam, não é mesmo. Afinal, era minha imagem, era quem eu era, era como todos me viam. E eu seguia caminhando pela prateleira meio apertada, apinhada, seguia me perguntando por que me sentia tão mal acabada? De quem teriam sido as mãos que me fizeram? De onde viera sua inspiração?

Eu já não queria mais somente existir para o deleite alheio. Deleite mais estranho esse o de possuir. Mais estranho ainda acho que só mesmo esse de achar que seres animados são inanimados quando assim o convém. Eu já não queria mais a prateleira, mas insistiam que era ali o meu lugar, afinal era pra isso que havia sido moldada.

É estranho olhar pra trás e constatar o quanto de fato me esforcei para desejar estar na prateleira, o quanto me esforcei para desejar ser a escultura mais bonita de todas, o quanto me esforcei para desejar ser possuída por aquele mestre mais importante de todos e ser seu mais caprichoso deleite. É estranho olhar pra trás e constatar o quanto desejei me tornar inanimadamente animada, um fantoche a ser possuídos por mãos que eu nunca seria capaz de enxergar.

As vezes acho que esse mundo feito de prateleiras e esculturas é essencialmente parnasiano. Afinal, por que haveriam de ter tantas esculturas? Será que não podemos compor outras formas, ou outras não-formas? Talvez eu quisesse ser uma música ou uma ferramenta útil. Talvez eu quisesse ser algo impossível de se possuir... como uma brisa fresca num fim de tarde quente!

Isso! Eu queria ser essa brisa! Essa brisa que tanto deleite provoca, mas um deleite desprendido, desses que só são capazes de surgir no momento inesperado. Uma brisa que vem acariciar seu rosto e bagunçar seus cabelos, dessas que faz uma cócega meio corrida no pescoço e vai embora só pra voltar daqui a pouco.

Eu não queria essa beleza parnasiana, essa beleza de forma industrial. Essa beleza nunca foi bela. Como pode haver beleza na produção em série? Todas as esculturas iguais, feitas da mesma forma, encaixadas na mesma prateleira, disputando a possessão que as algemas. Eu queria ser a beleza que não se vê. Eu queria ser uma dança, dessas que te dão vontade de gargalhar. Não consegues ver tamanha beleza no som dessa gargalhada?

Eu queria ser o meu deleite! Queria provocar deleite e que me provocassem também. Mas não essa coisa equivocada e parnasiana. Queria que você voltasse porque assim o deseja, e queria eu também voltar desejando. E quando deixassemos de desejar voltar, não haveria problema, bastaria seguir em frente.

Tudo isso foi ficando claro como água na fonte. Mas o espelho continuava mostrando a forma saída de uma forma industrial de produção em série. Eu tinha que quebrar a escultura!

Foram muitos gritos apavorados. Muitos tinham medo, alguns até pena... veja só... O mais difícil acho que foi constatar que enquanto eu passei grande parte da existência desejando desejar ser aquela forma, a maioria a minha volta simplesmente desejava. E quando você cai intencionalmente da prateleira, quando ouve o trincar da sua escultura, e quando constata que nada disso nunca foi real, você ainda ouve as pessoas repetindo que aquele desejo é real... talvez o seja... vai saber...

Do alto da prateleira eu ouvia a caixinha de musica, alguém a observava tão intensamente. Mas aqui de baixo é possível ver a bailarina que vive lá dentro. Ela roda roda sem nunca sair do lugar, ela roda roda na ponta de um pé só, ela roda roda sem parar. Ela era tão pequenina e, por isso a fizeram crer que era tão frágil e indefesa. Será que ela também deseja ter uma forma? Será que já contaram a ela que aqueles dedos que se sustentam no ar nunca foram frágeis? Será que ela sofre por ser um deleite inanimado?

Eu sigo achando que é um deleite muito estranho esse o de possuir... acho que mais estranho ainda só mesmo o deleite de ser possuído...