quinta-feira, 28 de junho de 2012

POTENTIA GAUDENDI


Por Beatriz Preciado

Para compreender como e por que a sexualidade e o corpo, o corpo excitável, irrompem no centro da ação política até chegar a ser objetos de uma gestão estatal e industrial minuciosa a partir de finais do século XIX, é preciso elaborar um novo conceito filosófico equivalente no domínio farmacopornográfico ao conceito de força de trabalho no domínio da economia clássica. Nomeio a noção de “força orgásmica” como potentia gaudendi: trata-se da potência (atual ou virtual) de excitação (total) de um corpo. Esta potência é uma capacidade indeterminada, não tem gênero, não é feminina ou masculina, nem humana nem animal, nem animada nem inanimada, não se dirige prioritariamente ao masculino ou ao feminino, não conhece a diferença entre heterossexualidade e homossexualidade, não diferencia entre o objeto e o sujeito, não sabe tampouco a diferença entre ser excitado, excitar e excitar-se-com. Não privilegia um órgão sobre outro: o pênis não possui mais força orgásmica que a vagina, o olho ou um dedo do pé. A força orgástica é a soma da potencialidade de excitação inerente a cada molécula viva. A força orgásmica não busca sua resolução imediata, aspira, isto sim, a estender-se no tempo e no espaço, a tudo e a todos, em todo lugar e em todo momento. É força que transforma o mundo em prazer-com. A força orgásmica reúne ao mesmo tempo todas as forças somáticas e psíquicas, põe em jogo todos os recursos bioquímicos e todas as estruturas da alma.

No capitalismo farmacopornográfico, a força de trabalho revelou seu verdadeiro substrato: força orgásmica, potentia gaudendi. O que o capitalismo atual poé a trabalhar é a potência de correr-se como tal (?), seja em sua forma farmacológica (molécula digerível que se ativará no corpo do consumidor), seja em sua representação pornográfica (como signo técnico-semiótico1 conversível em dado numérico e transferível a suportes informáticos, televisuais e telefônicos) ou em sua forma de serviço sexual (como entidade farmacopornográfica viva cuja força orgásmica e cujo volume afetivo são postos a serviço de um consumidor por um determinado tempo sob um contrato mais ou menos formal de venda de serviços sexuais).

O que caracteriza a potentia gaudendi não é somente seu caráter não permanente e altamente maleável, mas também, sobretudo, sua impossibilidade de ser possuída e conservada. A potentia gaudendi, como fundamento energético do farmacopornismo, não se deixa reduzir a objeto nem pode ser transformada em propriedade privada. Não so não posso possuir nem conservar a potentia gaudendi de outro, como não posso possuir e conservar aquela que aparece como minha. A potentia gaudendi existe unicamente como evento, relação prática, devir.

A força orgásmica é ao mesmo tempo a mais abstrata e a mais material de todas as forças de trabalho, inextricavelmente carnal e numérica, viscosa e digitalizável. Ah, glória fantasmática ou molecular transformável em capital!

O corpo polissexual vivo é o substrato da força orgásmica. Este corpo não se reduz a um corpo pré-discursivo, nem tem seus limites no invólucro carnal que a pele delimita. Esta vida não pode ser entendida como um substrato biológico fora dos entremeios da produção e cultivo próprios da tecno-ciência. Este corpo é uma entidade tecnoviva multiconectada que incorpora tecnologia. Nem organismo, nem máquina: tecnocorpo. Nos anos 1950, MacLuhan, BuckMister Fuller e Wiener já o haviam percebido: as tecnologias de comunicação funcionavam como extensões do corpo. Hoje a situação parece muito mais complexa: o corpo individual funciona como uma extensão das tecnologias globais de comunicação. Dito como a feminista Donna Haraway, o corpo do século XXI é uma plataforma tecnoviva, o resultado de uma implosão irreversível de sujeito e objeto, do natural e do artificial. Daí, a noção própria de “vida” resulta arcaica para identidicar os atores desta nova tecnologia. Portanto, Donna Haraway prefere a noção de “tecnobiopoder” à foucaultiana “biopoder”, posto que já não se trata de poder sobre a vida, de poder de gerir e maximizar a vida, como queria Foucault, mas poder e controle sobre um todo tecnovivo conectado.

No circuito de tecnoprodução de excitação não há corpos vivos ou mortos, mas conectores presentes ou ausentes, atuais ou virtuais. A imagens, os virus, os programas informáticos, os internautas, as vozes que respondem aos telefones rosas, os fármacos, e os animais de laboratório nos quais estes são testados, os embriões congelados, as células tronco, as moléculas de alcaloides ativos... não apresentam na atual economia global um valor em termos de “vivos” ou “mortos”, mas em termos de integráveis ou não na bioeletrônica da excitação global. Haraway nos lembra de que “as figuras do cyborg, assim como la semilla (?), o chip, o gen, o banco de dados, a bomba, o feto, a raça, o cérebro e o ecossistema, descendem de implosões de sujeitos e objetos, do natural e do artificial”. Neste sentido, todo corpo, incluindo aqui o corpo “morto”, pode suscitar força orgásmica, e portanto pode ser portador de potência de produção de capital sexual. Esta força que se deixa converter em capital não reside no bios-, tal como se entende desde Aristóteles a Darwin, senão como tecnoeros, no corpo tecnovivo encantado e sua cibernética amorosa. Disto, conclui-se: tanto biopolítica (política de controle e produção da vida) como tanatopolítica (política de controle e gestão da morte) funcionam como farmacopornopolíticas, gestões planetárias da potentia gaudendi.

O sexo, os órgãos sexuais, o pensamento, a atração, deslocam-se para o centro da gestão tecnopolítica na medida em que está em jogo a possibilidade de se tirar proveito da força orgásmica. Se os teóricos do pós-fordismo se interessam pelo trabalho imaterial, pelo “trabalho não-objetividade”, pelo “trabalho afetivo”, aos teóricos do capitalismo farmacopornográfico nos interessa o trabalho sexual como processo de subjetivação, abrindo a possibilidade de fazer do sujeito uma reserva interminável de corrida planetária conversível em capital, em abstração, em dígito.

Não devemos ler esta teoria da “força orgásmica” através do prisma hegeliano paranóico ou rousseauniano utópico/distópico: o mercado não é um poder exterior que vem a expropriar, reprimir e controlar os instintos sexuais do indivíduo. Enfrentamo-nos, pelo contrário, com a mais difícil das situações políticas: o corpo não conhece sua forma orgásmica até que a coloca em ação.

A força orgásmica enquanto força de trabalho tem sido progressivamente regulada por um estrito controle tecnobiopolítico. A mesma relação de compra-venda e de dependência que unia o capitalista ao trabalhador regia, até pouco tempo, a relação entre os gêneros como a relação entre o ejaculador e o facilitador da ejaculação. De aquí la definición (?): o feminino, longe de ser uma natureza, é uma qualidade que cobra sua força orgásmica quando pode ser convertida em mercadoria, em objeto de intercâmbio econômico, ou seja, em trabalho. Evidentemente um corpo masculino pode ocupar (de fato já ocupa) no mercado de trabalho sexual uma posição de gênero feminino, quer dizer, pode ver sua potência orgásmica reduzida a capacidade de trabalho.

Mas o controle da potência orgásmica não define unicamente a diferença entre os gêneros, a dicotomia masculino/feminino: define também, e de modo mais geral, a diferença tecnobiopolítica entre heterossexualidade e homossexualidade. A patologização da masturbação e da homossexualidade no século XIX acompanha a constituição de um regime do qual a força orgásmica coletiva é posta a serviço da reprodução heterossexual da espécie. Tal situação será drasticamente transformada com a possibilidade de tirar benefícios da masturbação através do dispositivo pornográfico e de controlar tecnicamente a reprodução sexual através da pílula e da inseminação artificial.

Se pensarmos, seguindo Marx, que “a força de trabalho não é o trabalho de fato realizado, e sim a simples potência de trabalhar”, então teremos de admitie que qualquer corpo, humano ou animal, real ou virtual, feminino ou masculino, possui esta potência masturbatória, potência de fazer ejacular, potentia gaudendi, portanto, potência produtora de capital fixo – posto que participa do processo produtivo sem consumir-se no próprio processo. Até então conhecemos uma relação direta entre pornificação do corpo e grau de opressão. Assim, os corpos historicamente mais pornificados têm sido o corpo da mulher, o corpo infantil, o corpo racializado do escravo, o corpo do jovem trabalhador, o corpo homossexual. Porém, não há uma relação ontológica entre anatomia e potentia gaudendi. Corresponde ao escritor francês Miches Houellebecq o mérito de haver sabido desenhar uma formulação distópica deste novo poder do capitalismo global para fabricar a megafurcia (?) e o megapollón (?): em tal contexto, o novo sujeito hegemônico é um corpo (aos poucos codificado como masculino, branco, heterossexual) farmacopornograficamente suplementado (pelo viagra, pela cocaína, pela pornografia, etc), consumidor de serviços sexuais pauperizados (pouco a pocuco exercidos por corpos codificados como femininos, infantis, racializados):

[…] Quando pode, o ocidental trabalha; seu trabalho suele enfastiá-lo e exasperá-lo, mas ele finge que lhe interessa. Aos cinquenta anos, cansado do magistério, das matemáticas e de todo o mais, decidi descobrir o mundo. Acabava de divorciar-me pela terceira vez; no âmbito sexual, não esperava nada em particular. Primeiro viajei a Tailândia; imediatamente depois fui a Madagascar. Desde então não voltei a foder com uma branca; nem sequer voltei a ter vontade de fazê-lo. Acredite-me – digo, tocando com firmeza o braço de Lionel – , já não encontrará na branca a buceta suave, dócil, flexível e musculosa, tudo isso desapareceu por completo.

Aqui a potência não se encontra simplesmente no corpo (“feminino” ou “infantil”) como espaço tradicionalmente imaginado como prediscursivo e natural, mas em um conjunto de representações que o transformam em sexual e desejável. Trata-se em todo caso de um corpo sempre farmacopornográfico, um corpo efeito de um amplo dispositivo de representação e produção cultural.

Revelar nossa condição de trabalhadores/consumidores farmacopornográficos é a condição de possibilidade de toda teoria crítica contemporânea. Se a atual teoria da feminização do trabalho esconde um cum-shot, a ejaculação videográfica diante da tela da comunicação cooperante, é talvez porque os filósofos da biopolítica, diferentemente de Houellebecq, preferem não revelar sua qualidade de clientes do farmacopornomercado global.

No primeiro tomo de Homo Sacer, Giorgio Agamben retoma o conceito de “vida nua” de Walter Benjamin para designar o estatuto biopolítico do sujeito depois de Auschwitz, cujo paradigma seriam o interno do campo de concentração ou o imigrante ilegal retido em um centro de permanência temporal: ser reduzido a existência física, despojado de todo estatuto político ou de cidadania. Poderíamos acrescentar a esta noção de vida nua a de “vida farmacopornográfica”, pois o próprio do corpo despojado de todo estatuto legal ou político em nossas sociedades pós-industriais é servir como fonte de produção de potentia gaudendiNeste sentido, o que caracterizaria aqueles que, segundo Agamben, se vêem reduzidos a “vida nua” tanto nas sociedades democráticas como nos regimes fascistas é precisamente poder ser objeto de uma exloração farmacopornográfica máxima. Por isso não é de estranhar que códigos similares de representação pornográfica dominem as imagens dos prisioneiros de Abu Ghraib ou Guantánamo, a representação erotizada dos adolescentes tailandeses e as páginas da Hot Magazine. Todos estes corpos funcionam já, e de maneira inagotable (?), como fontes carnais e numéricas de capital ejaculante. A distorção aristotélica entre zoe e bios, vida animal desprovida de toda intencionalidade frente a vida digna, vida dotada de sentido, de autodeterminação e substrato de governo biopolítico, teria de ser substituída hoje pela distinção entre raw e bio-tech, entre cru e biotecnoculturalmente produzido, sendo esta última a condição da vida na era farmacopornista. A realidade biotecnológica desprovida de toda condição cívica (o corpo do imigrante, do deportado, do colonizado, da atriz e do ator pornô, da trabalhadora sexual, do animal de laboratório, etc) é a de corpus (já não homo) pornograficus, cuja vida (condição técnica mais que puramente biológica), desprovida de direitos e cidadania, autor e trabalho, está exposta a é construída por aparatos de autovigilância, publicização e mediatização globais. E por tudo isso em nossas democracias pós-industriais, não tanto sob o modelo distópico do campo de concentração ou de extermínio, facilmente denunciáveis como dispositivos de controle, mas formando parte de um bordel-laboratório global integrado multimídia, no qual o controle dos fluxos e dos afetos se levam a cabo através da forma pop da excitação-frustração.

1Preciado escreve técnico-semiótico, inverti a ordem por razão puramente estética.

terça-feira, 19 de junho de 2012

terça-feira, 12 de junho de 2012

Homens, saiam da minha teoria


Um update pessoal...

Para ser sincera, eu sou uma pessoa desinformada: isso não é nada bom. Por saber que a mídia burguesa é, como qualquer conglomerado empresarial, um cartel de entidades político-econômicas comprometidas com o lucro via entretenimento alienado e alienante, poupo-me de ver televisão e não leio revistas ou jornais de grande circulação. É um misto de comodismo com um esforço sincero de não ser agredida em meus ideais sexo-políticos – do ponto de vista simbólico, qualquer emissora que veicule comerciais de produtos de limpeza abusa profundamente da minha assignação bio-política, e acaba por me agredir. Mas não, não está certo, embora, por hoje, seja o que está dentro das minhas capacidades.

Acabo me atualizando por outros blogs e por outras feministas. A quem pense que “assim você já está recebendo a notícia pelo viés político”, a “forma notícia” também não é uma forma de pensar politicamente um acontecimento? Na medida em que o recorte primeiro desta forma de narrar é “deixai à porta da mídia todas as marcas discursivas de sua opinião”, a notícia não é o mecanismo pelo qual uma visão política se traveste de evidência? Para mim, assim o é, de forma que receber as notícias por um olhar feminista muito me agrada.

Para me atualizar, o blog que leio é o da Lola. Com todas as críticas que se fazem dela, uma coisa é certa: o fato de postar todos os dias faz com que seja um método eficiente para me manter atualizada. E o contato com feministas de outras partes do mundo dá uma dimensão importante na luta contra o machismo, no sentido de termos noção das especificidades das lutas pelo mundo afora. Enfim, o post que eu gostaria de comentar é o bom e velho post sobre “homexplicar”: embora a maior parte de mis amigues já tenha lido sobre o assunto, do blog da Lola ou de fontes outras, acho que eu preciso ver essas palavras saindo de mim mesma, como a mais ateia e desiludida das preces. Para entender, preciso fazer essas palavras passarem pelas minhas vísceras neurais, torná-las parte do meu corpo e da minha identidade. E eu o faço através da escrita.

E vamos ao que interessa

Parafraseando uma blogueira estadunidense (aconselho que vocês leiam o post da Lola também), a autora diz:

 “Homexplicanismo não é apenas o ato de um macho se explicar; muitos homens conseguem explicar coisas todos os dias sem serem minimamente ofensivos a suas interlocutoras. Homexplicanismo é quando um cara explica a você, mulher, como fazer algo que você já sabe fazer, ou como você está errada a respeito de algo que você de fato está certa, ou apresentar 'fatos' variados e incorretos sobre algo que você conhece muito melhor que ele. Pontos extras se ele te explicar como você está errada sobre algo ser sexista!

No caso da Lola, ela está visivelmente preocupada com o average man, a pessoa comum, o que, tendo em vista estarmos numa sociedade hetero-capitalista, acaba resultando no indivíduo com inclinações políticas liberais. Minha preocupação, contudo, é outra. Meu buraco é mais à esquerda.

Vivo, atualmente, cercada de pessoas que assim se reivindicam. Isso é excelente! Vivo em contato intenso com marxistas, anarquistas, enfim, pessoas comprometidas com o fim do capitalismo, cada uma a seu jeito, e que parecem entender perfeitamente o problema da opressão à mulher. São pessoas que, pelo menos em suas performances narrativas, se mostram não só simpáticas (hoje acredito que toda forma de simpatia é na verdade uma maneira disfarçada de apatia), mas solidárias, e sobretudo engajadas. Não se tratam de pessoas limitadas àquele tapinha nas costas, àquele go girl, ou à máxima “o mundo precisa de pessoas como você”. São pessoas que lêem, que estão do seu lado no dia-a-dia, que são o ombro no qual você chora ao final daquela discussão que você teve com a pessoa mais machista do mundo. Pessoas que citam trechos inteiros de uma Butler (uma? Será mulher?), Beauvoir ou Kollontai, que em assembléias e plenárias pegam do microfone para defender você com unhas e dentes.

E no entanto, se você pergunta para eles (sim, homens), onde está o problema, o problema está em todo lugar: é o capitalismo, é o machismo, é a exterioridade absoluta que nunca tem nada a ver com suas identidades. E aí você pega a galera na curva da contradição: são homens, isto é, corpos bio-politicamente assinalados a uma identidade de gênero relacionada com uma estrutura que os empodera, mas que em hipótese alguma consideram que a relação de poder passe por suas identidades, ainda que não parta delas individualmente. Pessoas que se comprometem a relações monogâmicas sem a menor pretensão de cumpri-las, enredando suas parceiras em relações instrumentais das quais visam a obter apenas uma confortável e perene fonte de sexo e afeto. Homens que gritam GOL e afirmam que estamos numa pátria de chuteiras, diante de uma indústria pseudo-esportiva que vive de alimentar (e ser alimentada) por um modelo violento de masculinidade (aliás, existe modelo não-violento de masculinidade?).

E o que acontece quando você coloca os machos na parede e cobra respostas coerentes sobre o disparate deste comportamento é o mais fenomenal homexplicanismo: eles vêm com o caminhãozinho das mais diversas citações feministas e jogam na sua cabeça fazendo tudo soar com um incrível ineditismo! Eles se apropriam daquelas que são as suas armas para lutar contra a opressão à qual desde a ultrassonografia você está assinalada, usando este arsenal teórico, que é seu, contra você. Para manter todos os privilégios relacionados à sorte cósmica de terem nascido geneticamente com um cromossomo Y.

A esses homens, peço que me dêem licença e saiam da minha teoria. Ou antes, talvez esteja mais do que na hora de repensarmos esta miscelânia de gente que é a esquerda: que ela deixe de ser o signo da luta do homem branco pela liberdade de sua etnia, sua orientação sexual e sua identidade de gênero, e passe a ser o signo da luta contra toda e qualquer opressão. Para mim, se você não é feminista, simplesmente não é de esquerda. Fim de papo.

domingo, 3 de junho de 2012

VERDADE VERDADEIRA


Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Somos ensinadxs desde bem pequenxs que existe uma verdade. Algumas coisas são verdadeiras e outras são falsas. “Você não deve contar mentiras, diga sempre a verdade” diz aquela vozinha repressora encarnada em tantas figuras adultas diferentes que é até difícil enumerá-las. Nós crescemos num afã de buscar a verdade a todo instante, quase como se ela fosse um objeto mágico e secreto, o pote de ouro no final do arco-íris.

Enquanto somos criança fica bem claro que a verdade não nos pertence, ela é do mudo dos adultos. Mamãe e papai possuem a verdade, se você não sabe alguma coisa, pergunte a eles, os adultos sabem. X professorx da escolinha também possui a verdade, e elx vai compartilhar pequenas porções de verdade com você no seu longo e árduo caminho de adestramento para se tornar um bom adulto possuidor de verdade.

O tempo todo, a verdade paira sobre nossas cabeças, inatingível e imaterial. Apesar de intocável ela parece estar sempre presente.

Quando eu entrei nessa graduação eu já não tinha ilusões. Sendo essa a minha segunda, eu já estava ciente dos egos inchados dxs professorxs doutorxs grandes possuidorxs da verdade. Mas aqui, num curso de humanas, era exatamente esse o conceito que seria tema de todo meu semestre. Logo na primeira semana de aula tive que ouvir a definição da verdade. “Anota no caderno porque cai na prova, tá.”

Definição de verdade... Eu não consigo nem pensar nisso sem esboçar um sorrisinho no canto da boca.

“Verdade é um conceito absoluto.” Opa... “absoluto?” Ousei perguntar... Mas eu já sabia a resposta que me seria dada, ela é sempre a mesma, seja na academia ou fora dela. E o que eu acho mais curioso é que o exemplo que eu ouço para ilustrar o suposto absolutismo da verdade também é sempre o mesmo.

“Claro que a verdade é absoluta. Não pode ser relativa. Se for relativa vira opinião. Você acha isso, eu acho aquilo e quem está certo? No relativismo qualquer coisa é justificada. Então podemos dizer que Hitler estava certo. Era a verdade dele. Não! A verdade é absoluta. Não tem como ser diferente.”

E aí o coleguinha na mesa ao lado ri pra mim e brinca baixinho “sua pós-moderna”...

E eu acho engraçado o exemplo citando Hitler. Sempre o mesmo! É moda por aí as pessoas apontarem o dedo e acharem o máximo as produções hollywoodianas sobre o holocausto. Mas na hora de exercer o fascismo nosso de cada dia, aí tudo muda. A gente vê os Bolsonaros da vida aparecendo aí na mídia todo dia, e muita gente concordando com ele. E a relativista sou eu... aff...

Veja bem, a verdade não pode ser absoluta, simplesmente porque ela é um conceito (apesar de ter ganhado status de entidade). Todo conceito é criado, inventado. Quem definiu o que é verdade? Porque essa definição foi a escolhida e não outra qualquer? Psiu... segredo... porque conceitos são criações que tem finalidade política... oops... contei...

Imagina só se a sociedade ensinasse às crianças que verdade não existe, se elas aprendessem que são livres... Oh! Isso seria anarquia! (rsrs) Como produziríamos adultos capazes de trabalhar resignados produzindo a tal da mais-valia pro patrão? Como produziríamos mulheres quietinhas que seguem enchendo suas barrigas de bebês novinhos em folha, prontos pra receberem seus códigos de barra? Imagina se as pessoas acreditassem que são livres para viverem suas vidas da forma que desejassem, que tudo isso é um grande teatro orquestrado pra encher o bolso de alguns poucos...

Certa vez, conversando com minha amiga e companheira de blog, ela discorria sobre a pós-modernidade. Lembro muito bem das suas palavras: “sabe por que a academia não gosta da pós-modernidade? Porque esse é o momento histórico onde as supostas minorias estão invadindo a academia. Negros, mulheres, gays... todo mundo sentando, escrevendo, publicando e dizendo que aquela verdade ali, que foi proferida por milênios pelo homem peniano, ocidental, heterossexual, não nos contempla não... Isso aí que vocês tão falando não tem nada a ver com a minha realidade, e agora é a nossa vez de falar... Então sentem aí e me ouçam... E é claro que a academia não vai sentar e ouvir porra nenhuma! Ninguém quer ouvir preto falar! Ninguém quer ouvir mulher falar! Ninguém quer ouvir viado falar! Ninguém quer ouvir sapatona falar! E se você for tudo isso ao mesmo tempo aí que ninguém quer te ouvir mesmo!”... É Minkah, você tem razão...

Essa verdade de vocês é absoluta única e exclusivamente porque ela é ditatorial. Erga sua voz contra ela e serás penalizado. Aliás, nem precisa tanto, basta questioná-la e já serás penalizado.

Por que meninas não podem gostar de meninas e meninos de meninos? Por que meninos não podem usar roupas de meninas e meninas as de meninos? Aliás, o que são meninas e meninos? Quem disse que ter um pinto ou uma buceta te define? Por que eu tenho que desejar casar e ter filhos? Só por que eu tenho um útero? Eu também tenho o apêndice, eu devia estar fazendo o que com ele? Por que eu preciso comer carne? Preciso mesmo? Eu vou morrer por acaso se deixar de comer animais? Por que temos que fazer testes em animais? É impossível produzir conhecimento médico sem torturar seres sencientes? E a gente precisa desse conhecimento? Aliás, o que é conhecimento? Ah... é outro conceito...

Veja, essas perguntas não são um brain storm aleatório. São perguntas que tem sido feitas justamente no intuito de mostrar a cagada que é apostar nesse sistema que tá aí. E o simples fato de pensar nessas perguntas já é subversivo.

E nessa hora sempre tem um engraçadinho que vai dizer assim “ah, mas a gente pode achar que tem a verdade, quando não temos. Então mudamos a forma de agir e pensar, a cultura é mutável, coisas que já foram consideradas normais hoje não existem mais, como escravidão. Mas isso não significa que verdade não exista, apenas que acreditávamos em algo falso”.

Sabe o que eu escuto? “Eu estou sentado aqui nessa cadeira dourada há milênios conduzindo a humanidade lindamente como fantoches bobalhões me servindo, e agora vem essa galera aí achando que podem me desbancar? Eu não abro mão do meu conceito, então vou usar aqui de todo o meu poder de retórica rebuscada pra convencê-los. Vou jogar aqui um exemplo pra agradá-los... mas claro que todo mundo sabe que escravidão não acabou coisa nenhuma. Ah, mas se alguém perguntar a gente lembra logo da Princesa Izabel que fica tudo certo. Mas meu conceito é MEU! E ninguém tira ele de mim!”

Aí quando eu digo que isso é religião a maluca sou eu... Será possível que ninguém nota a semelhança entre essa discussão de verdade e o pastor esbravejando com a bíblia na mão? Galera, verdade absoluta é o Deus acadêmico!!! Oiii!!! Aloooouuuu!!!! Ninguém nunca poderá ter certeza se atingiu a verdade ou não, mas isso não faz com que ela não exista, nem deixe de ser absoluta. Só falta dizer “mesmo que você não acredite na verdade, ela acredita em você”.

De novo... depois a maluca relativista sou eu... aff...