domingo, 27 de janeiro de 2013

Será que seu discurso está ajudando alguém?

Era uma vez Eu, aos 12 anos, descendo uma rua de Pendotiba. Este bairro, onde ainda moro, é ainda composto hoje de grandes casas de classe média, interrompidas por longos terrenos baldios, ruas sem asfalto ou iluminação pública. Eu estava a caminho da casa de minha amiga Julia, a dois quarteirões da minha: quinze minutos de caminhada serena, de uma solidão quase ininterrupta. Cabelos cacheados ao vento, fazendo um mafuá (como diria minha mãe), um short jeans curto, uma camiseta. Tênis, e nada mais.

Um homem veio subindo a rua, empurrando a bicicleta. Short, um sorriso, um banco que eu nunca vou esquecer, com escudo do flamengo e umas franjinhas vermelhas. Ele me disse Boa Tarde, sorrindo, e eu respondi, sorrindo. Ele me disse que eu era linda. E eu, que vivia sofrendo na escola por ter "cabelo de preto", por ser gordinha, por ser sardenta, sorri sem pensar. E agradeci. Ele perguntou: posso chegar perto de você? Pra conversar... e eu deixei.

Ele segurou meu braço. Ele me olhou nos olhos, eu percebi o que ele ia fazer, porque aquele short que parecia mais uma cueca samba-canção era a única coisa que o vestia. Seu corpo reagiu ao meu. Não era só uma conversa. Ao nosso lado, um terreno baldio. Só.

Eu gritei e chorei. Disse que minha amiga sabia onde eu estava, e estava me esperando. Que se ele fizesse alguma coisa, meu pai ia saber; que a mãe da minha amiga estava vindo me buscar, bem naquela esquina ali na frente. Que se ele fizesse alguma coisa, todo mundo ia ficar sabendo; ele soltou meu braço e eu corri, como nunca. Fisicamente ilesa, mas psicologicamente transformada. Isso aconteceu quando eu tinha 12 anos; eu levei outros 14 para finalmente acreditar que a culpa não era minha.

Sim, faço minhas análises a partir de minha vivência individual porque, como já vaticinou nossa Carol Hanisch,  "o pessoal é político". Posso tranquilamente analisar, daqui do meu lugar de fala, todo o patriarcado, porque não há nada, nada mesmo, de pessoal na minha história: ela se repete todos os dias, agora mesmo enquanto falamos, com milhares de garotas, de novinhas ao redor do mundo, que não sabem o quanto seus corpos são sexualizados. Que não se dão conta de que vivem no mesmo mundo onde livros como Lolita são lançados todos os dias, reforçando o estereótipo de que meninas de 12 anos, como eu, que brincam de boneca escondidas, como eu brincava, têm perfeita noção do quão sensualizadas são em seus corpos imaturos, de que meninas de 12 anos têm perfeita noção do mundo e dos valores que as cercam, e "brincam" com isso, que seduzem. Eu contei a história para poucas pessoas, poucas mesmo, e na época a recepção foi a mesma que milhares de garotas têm, diariamente, ao redor do mundo: "por que você se vestiu assim?", "por que você estava sozinha?", como se meu corpo não fosse meu, e eu pudesse perder o direito à minha integridade física e psíquica à proporção de um mau comportamento. E quem o definiu como mau?

Digo isso porque, recentemente (mais uma vez... será que eu não aprendo?) tive uma conversa desagradável com uma feminista que repercutiu a seguinte mensagem:


Trata-se de mais uma dessas críticas "bem-humoradas" e cheias de boas intenções que procuram orientar as meninas sobre os conteúdos machistas das músicas que consomem ou dos comportamentos que reproduzem. Só que não tem nada de novo no enunciado acima, nem de diferente do discurso patriarcal, segundo o qual "se você está ouvindo Mr. Catra, então você está querendo", como se as meninas que ouvem e o Mr. Catra protagonizassem em pé de igualdade, horizontalmente, a produção do discurso misógino de suas músicas. O discurso acima, como muitos outros que têm circulado livremente, aclamados no FaceBook e outras mídias, não problematiza a desinformação das meninas, a mídia que as coloca reiteradamente como pedaços de carne, a agressão simbólica que resulta da quantidade de corpos "femininos" despidos, em contraste com os corpos "masculinos" que não precisam tirar a roupa para se legitimarem ou valorizarem.

A minha opositora reclama que estou chamando as meninas de burras. Não estou: estou dizendo que são desinformadas. Que enquanto elas lêem Crepúsculo, aprendem a se casar virgens, aprendem que amor é para sempre, eles assistem filmes pornográficos altamente violentos, não raro com meninas menores de idade sendo literalmente comidas por homens adultos. Estou dizendo que, enquanto os filmes de aventura são protagonizados por homens sempre escolhidos para grandes missões que não raro incluem salvar o mundo (Matrix, Star Wars, sem falar em todos os super-heróis), a indústria cinematográfica reserva a nós, possuidoras de buceta, os famosos filmes água-com-açúcar, comédias românticas cuja saga épica consiste na missão de malabarizar emprego, filhos e amor. Nada de salvar o mundo, para nós: nossa maior aventura é conquistar o vestido branco, e qualquer violência que soframos no caminho é nossa culpa.

Nenhuma de nós nasceu feminista. Nosso caminho é longo, árduo, pavimentado ora com leitura, ora com discussões como esta, ora com experiências dolorosas que, não raro, preferiríamos não passar. Não parta do princípio de que o patriarcado é tosco e auto-evidente: se assim o fosse, as pessoas naturalmente descobririam seus problemas, sem o auxílio de feministas ou de quem quer que seja. Dizer que "as mulheres não são totalmente inocentes, elas sabem o que estão fazendo", e dizer que o patriarcado as protege de alguma forma, oferece-lhes ainda alguma vantagem, e que nós nos beneficiamos ao reproduzi-lo - coisas que em definitivo não são verdadeiras. Dizer que estamos levando vantagem é fazer coro com aqueles pseudo-cavalheiros que beatificamente vivem dizendo "quer ser independente, mas quer que paguemos a conta", ou (mais ridículo, mas juto que ouvi) "é feminista, mas tem medo de barata". Será que seu discurso está ajudando alguém? De que lado você fica?

2 comentários:

  1. Concordo que as meninas são desinformadas, e por isso, são as principais vítimas de um sistema perverso que vê números ao invés de pessoas...
    A sociedade precisa acordar e ver que se houver organização podemos muito!!

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  2. Concordo com quase tudo o que disse, mas no último parágrafo você diz que não levamos nenhuma vantagem por sermos alvo do patriarcado. Discordo. Inclusive vou usar o seu próprio argumento, pois é esse mesmo que costumo usar, se ele fosse tão auto-evidente a libertação aconteceria muito mais fácil. O que me faz pensar é que essas "compensações" são formas de manter a opressão, uma estratégia simples, largamente empregada para desarticulação de movimentos e para a construção de ilusões para xs oprimidxs. O patriarcado nos protege de alguma forma, mas isso não quer dizer que nos respalda. Acho que proteger em si pode ser não nos mandar para guerras, por exemplo, mas definitivamente não é o mesmo que nos empoderar.
    Não é difícil compensar alguém que você treina desde criança para acreditar que é inferior e que qualquer coisa que ela receber é lucro.
    Ótimo post =D
    Suane

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