domingo, 28 de julho de 2013

Sobre imagens quebradas e mulheres mortas

Eu estava no ônibus, voltando da Marcha das Vadias, cansada e muito feliz. Enquanto o movimento feminista luta contra a apropriação capitalista do dia 08/03, tentando resgatar sua história como um dia de luta, enquanto lutamos pela visibilidade do nosso extenso calendário, que inclui datas como o dia da mulher negra latina e caribenha, a Marcha das Vadias é uma espécie de (controverso) carnaval: um espaço em que se luta contra o racismo, contra o machismo (por razões óbvias), contra a homofobia... é, de longe, a data feminista em que eu mais vejo militantes independentes, gente que não milita de maneira orgânica e mesmo assim está puta, faz seu cartaz, e aparece na hora... É a marcha mais heterogênea entre as feministas, e não necessariamente as atitudes de alguns grupos representam o conjunto da marcha, exatamente por esse caráter múltiplo, que é o que a torna minha marcha preferida. E eu estava cansada de pular, cantar, ver as coisas lindas que as pessoas estavam fazendo, quando diversas pessoas me mandaram mensagens perguntando que porra foi aquela de pessoas quebrando imagens religiosas. Eu não respondi no momento porque achei melhor dar uma resposta só, pra todo mundo. E é esta.

Uma das frases mais famosas, que mais aparecem nas Marchas por aí, é essa: "tirem seus ovários dos meus ovários". Em tempos nos quais o relativismo virou um fim em si mesmo, a frase se dilui num contexto de interpretações que levam a frase para o lado mais simbólico, "cultural", como se os símbolos não organizassem violências que se dão na materialidade dos corpos. Existimos nos signos, por signos, e a inquietação do movimento feminista com as palavras vadia, feminicídio, misoginia, é a luta por tornar visíveis um conjunto de violências que, não tendo maneiras de se organizar num discurso visível e legível, acabam sendo naturalizadas. Quando dizemos "tirem seus rosários dos nossos ovários", estamos dizendo que o discurso tem uma presença física, real, e mortífera, nos corpos que engravidam e só têm duas opções: tornarem-se mães sem desejar, ou correr o risco de morrer em uma clínica clandestina.

Eu fiz um aborto. Fiz um aborto pois meu namorado de então, descrito no post anterior, abusava psicologicamente de mim e mantinha um regime de sexo sem camisinha, já que usar camisinha era "chupar bala com papel" e eu não conseguia me adaptar a nenhum anticoncepcional. Eu me guiava estritamente pela tabelinha, até que, em um final de período da faculdade, minha menstruação ficou louca, desceu antes do tempo, eu fiz sexo MENSTRUADA e engravidei. Estava no meu primeiro estágio, fazia monitoria na faculdade, tinha uma péssima relação com a família, me relacionava com um cara que estava cagando para mim. Com o dinheiro que eu tinha disponível, conversei com minha médica, e por oitocentos reais consegui fazer "o procedimento" numa clínica bizarra. Bizarra, porque a cada dez minutos uma menina nova entrava na sala de "cirurgia"; porque, na sala de espera, ficávamos nuas, somente vestidas por um roupão de papel crepom; bizarra porque eu entrei na sala enquanto uma menina era levada embora nos braços, e provavelmente uma série de instrumentos usados nela seriam usados em mim sem nenhuma esterilização; bizarra porque os restos removidos de nossos úteros iam para um BALDE QUE FICAVA AO LADO DA MACA; BIZARRA porque, enquanto eu chorava, o médico disse apenas "se você aspirar o choro, vai morrer sufocada".

Uma clínica bizarra porque isso é o que você consegue quando tem os tais oitocentos reais. Quando não tem, o que te espera são as mães de anjo, o citotec, aborto com talo de couve, agulha de tricô. A maior parte dessas pessoas que abortam é mais pobre do que eu sou, são pessoas trabalhadoras que já são mães e não querem submeter seus filhos à miséria. E ao contrário de mim, que sou ateia, essas mães são cristãs, e enfrentam diariamente, às vezes por toda a vida, a culpa pelo que fizeram; julgam-se desnaturadas, porque o amor materno que nos dizem cercar a gravidez simplesmente não estava lá. O que estava lá era a necessidade de sobreviver com subempregos e salários injustos, um marido violento que se recusava a usar métodos contraceptivos, um sistema de saúde que reluta em distribuir métodos contraceptivos além da camisinha que os homens são ensinados a NÃO usar.
Isso é físico, isso é material, isso é a presença real de rosários em nossos ovários, causando mortes e sequelas todos os dias. Por isso, quando a JMJ distribui terços feitos de embriões ou bebês em miniatura que não correspondem ao estágio de desenvolvimento de um feto daquele tamanho, isso deveria nos chocar. Deveria, pois se trata da criminalização, da culpabilização de pessoas que não tiveram nenhuma escolha. É violento, é injusto. É terrorismo.


Na Marcha das Vadias do Rio de Janeiro, ontem, um grupo de manifestantes resolveu fazer uma performance porno-terrorista envolvendo imagens que são sagradas para alguns cristãos. A performance incluía quebrar crucifixos e imagens de jesus, bem como inserir nas cavidades anal e vaginal as cabeças de duas santas. Tudo isso feito por corpos não-heteronormativos, não-brancos, não-bonitos - ou eu poderia dizer corpos queer, negros e considerados feios pelo capitalismo. Ao final da performance, todas as imagens foram quebradas. Para mim, a mensagem ali era muito clara, muito íntima também: era tornar gráfica a presença da religião em nossos corpos, através da inserção de estátuas no interior de corpos; e ao retirá-las, quebrá-las, rejeitando a presença de deuses que não adoramos, alienando-nos em relação àquele único bem que temos, no final das contas: nosso corpo.

Imagino que isso ofenda muitos cristãos. Mas mesmo um cristão vai concordar que se tratavam de imagens, objetos de cerâmica fabricados em escala industrial e vendidos em qualquer esquina. Ninguém morreu. Já os rosários em nossos ovários, esses matam todos os dias. E ao transformar a profanação de símbolos religiosos num ato de terrorismo, o que a performance faz é trazer à tona o fato de que submeter milhares de mulheres aos caprichos dogmáticos de uma religião falocêntrica também é terrorismo. Terrorismo de Estado.

domingo, 14 de julho de 2013

Você não deve nada a seu agressor - abuso psicológico em relações heterossexuais*

*Depois de escrever este texto, conversei com algumas amigas para conferir se essa situação se restringia aos relacionamentos heterossexuais e concluí que não. Relacionamentos abusivos estão presentes entre gays, lésbicas, pessoas trans*, de forma que, mesmo que você não seja HT, muita coisa seja válida. Ainda assim, como não conversei com um número muito grande de pessoas, optei por deixar o texto como está.

Cerca de uma semana atrás, muita gente ficou chocada quando o desembargador Sidney Rosa da Silva declarou que o caso de violência de gênero de Luana Piovani e Dado Dolabella não poderia ser enquadrado na Lei Maria da Penha uma vez que a referida atriz teria condições materiais suficientes para não ser dependente de seu agressor. Sutilmente, como convém ao idioleto legislês, Sidney afirma que, para concluir que “é público e notório que a indicada vítima nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem", basta "uma simples análise dos personagens do processo", e fecha sua conclusão afirmando que a lei não pode proteger Luana uma vez que sua relação - de dois anos e quatro meses de namoro culminando em um noivado - com Dado não era estável. Ou seja: a justiça brasileira entende que a Lei Mari da Penha é a medida pela qual você premia uma mulher, de preferência morta, pela sua submissão. Tente andar na linha do patriarcado, ou quem vai ser julgada é você - ou só eu entendi que "uma simples análise dos personagens do processo" faz clara referência à vida amorosa pregressa da atriz?

Muita gente tem dificuldade de acreditar nessas situações. Ainda é muito difundida a ideia de que a única desigualdade que existe entre homens e mulheres é a econômica, e que uma vez esta superada, a sobrevivente é que é uma otária, que está tendo o que merece, ou na máxima Nelson-rodrigueana, "gosta de apanhar". Mas a gente sabe como nossas subjetividades são construídas, como somos representadas na cultura popular ou de massas: uma mulher, em termos de narrativas dominantes, só é completa na presença do Amor. Só somos seres plenos, nossas vidas só são válidas, se estivermos inseridas afetivamente num projeto de família burguesa que envolva a doação sem limites de nossos corpos e mentes para a empresa amorosa. Algo está dando errado? Você não está se empenhando. Você está apanhando? Dê a outra face. E nesse contexto misógino, nós somos as presas preferenciais de abusos psicológicos

Eu nunca vivi um relacionamento que tivesse violência física; mas passei por dois, um longo e um breve, que foram marcados por um abuso psicológico severo. Lendo outros relatos de pessoas em casos semelhantes aos meus, levantei algumas características que se apresentam no momento inicial da relação e que podem ser um bom alerta de que nós estamos caminhando para uma furada.

1. O cara sofrido que te conta a vida inteira no primeiro dia
Geralmente, isso nos comove. Quando se vive perto de narrativas como A Bela e a Fera, em que o poder na mulher é traduzido como o de mudar a vida de um homem, muitas pessoas se sentem empoderadas ao se pensarem como capazes de salvar uma vida. Então, o cara chega para você e conta de maneira detalhada e amplamente dramática como ele foi vítima das piores situações da vida: preconceito, pobreza, alguma grave desilusão amorosa, perda de pessoas queridas... O que importa nesta narrativa não é a veracidade dos fatos: tudo pode ser verdade. Mas a escolha dos eventos é sempre baseada num paradigma em que o homem é a vítima absoluta e inconsolável, e aquilo que o flagela, seja uma condição financeira, seja uma pessoa, está claramente errado. Isso coloca a virilidade dele aparentemente em xeque, e o fato de ele escolher você para se abrir tão completamente joga você em uma dívida que, pode acreditar, vai ser cobrada depois. Porque ele é muito sofrido e não pode sofrer mais; qualquer coisa que você faça de errado será a gota d'água, e essa história de sofrimento vai ser invocada muitas vezes para igualar você a todas aquelas coisas e pessoas que destruíram a vida dele.

2. A grande prostituta
É uma narrativa comum, mas não imprescindível: meus dois relacionamentos abusivos passaram por esse momento, então acho que vale a pena contar. Já ficou claro, naquele primeiro dia em que o cara contou sua sofrida história de paladino da justiça, que ele é uma jóia rara em meio a todos esses caras babacas que só querem usar você. Ele é diferente, sensível, seu coração um cristal que pode quebrar a qualquer momento e que agora está em suas mãos. Então ele vai, didaticamente, contar a você uma situação passada em que ele fez isso com outra mulher. Esta, por sua vez, só queria brincar com ele - porque, aparentemente, o mundo está cheio dessas bíblicas grandes-prostitutas que vivem sua vida em função da vida dos homens. Nossa função é roubar, matar e destruir corações de pobres cavalheiros... e você não quer ser como ela. Mais uma vez, o paradigma "eu não fiz nada de errado e fui vítima da mais completa injustiça" vai se repetir, e você vai receber o encargo de redimir o seu gênero demonstrando quão santa você é.

Essa narrativa geralmente é falsa. No meu caso, foi um caso típico de friendzone, isto é, o cara tratou uma garota como um ser humano e daí concluiu que toda a sua cortesia tinha se transformada numa dívida sexual. E quando ela simplesmente o via como ele se comportava, "como um amigo", o cara ficou decepcionado, saiu falando coisas sobre ela para todas as mulheres com quem ele passou a se relacionar depois.

3. Você também é uma grande prostituta, mas eu perdôo você
Este não é seu primeiro relacionamento; no meu caso, não apenas não era o meu, como eu vinha de uma experiência de relacionamentos abertos, múltiplos relacionamentos simultâneos ou relacionamentos monogâmicos de curtíssima duração. Meu agressor, num primeiro momento, não condenou frontalmente meu comportamento, mas declarou que não gostaria de estar num relacionamento aberto. Eu propus uma monogamia temporária (gente, isso nunca dá certo), e neste momento ele deu a entender que, como minha natureza não era monogâmica (wtf natureza, galera?), teria dificuldades em confiar em mim. Eu lhe dei um tempo para pensar, algo como uma semana, ao final da qual ele me perdoou. Eu achei, na época, estranha essa lógica do perdão, já que eu não tinha feito nada contra ele, nem nada de errado. E essa lógica do perdão entrega os pontos: o cara vê você como propriedade, estando apto a julgar seu comportamento como se você sempre tivesse pertencido a ele - como um senhor que, antes de comprar um escravo, pergunta sua história ao vendedor.

4. Declarações de amor viram megaeventos
Para essas pessoas, é muito importante fazer declarações públicas no local de trabalho, de estudo, no círculo familiar. Isso é tudo o que seus colegas e parentes vão ver, e que vai lhe render a reputação de "bom partido": assim, quando você por algum motivo quiser contar algo que ele tenha feito e te desagradado, você não vai obter confiança de pessoas que são especialmente próximas. Porque essas pessoas abusivas sabem que, para instalar uma situação difícil de se sair, vão precisar afastar você de círculos sociais que são importantes. Se o cara sente muita necessidade de transformar declarações de amor em megaeventos, desconfie.

5. Pequenos eventos viram megabrigas
Lembra daquela parte em que ele já sofreu demais nessa vida, e que não aguentava mais? Neste momento você descobre que aquilo era uma ameaça. Obviamente, quem vai definir os limites do que ele não vai mais aguentar é ele mesmo: mas a partir disso, qualquer coisa que o desagrade vai virar uma briga incontrolável e o assunto sempre vai chegar em um momento no qual ele vai levantar todo o histórico de dor e sofrimento da vida dele, e comparar ao seu histórico de grande prostituta que ele está fazendo o favor de perdoar. Ficando claro, também, que não tem perdão nenhum, porque o seu passado vai ser para sempre um trunfo e objeto de chantagem.

6. Ninguém vai te amar como eu te amei
E essas brigas vão acabar em lágrimas (muitas dele...), e com o relacionamento terminando. Ele vai pedir para voltar muitas vezes, senão na maioria. As brigas vão, ciclicamente, ficar mais e mais violentas, mas os retornos vão ficar cada vez mais épicos, grandiloquentes, cheios de promessas, e um discurso sempre muito articulado demonstrando quase cientificamente que ele entendeu o problema e é um novo homem. E você vai ouvir frases parecidas com as que eu ouvi. Frases aparentemente líricas, mas que não têm nada de legal. Eu ouvi muitas vezes "Ninguém vai te amar como eu te amei". Para uma moça que está acostumada a pensar que o grande objetivo de sua vida é ingressar no paraíso do Grande Amor, essa frase é uma profecia assustadora. Nessa frase está subentendido, de fato, que esse cara é perfeito; que tudo o que ele fez foi certo, foi lindo, e se por acaso ele errou alguma vez, foi um acidente; sobretudo, essa frase quer dizer que você não presta - seja porque é promíscua, "gorda" (o que é "ser gorda" senão o que o patriarcado diz que é?), "feia" (idem do adjetivo anterior), porque você é uma péssima mãe, amiga, namorada, seja lá o que for... E que ele é a sua tábua de salvação, sem a qual você vai acabar sozinha e seca para todo o sempre.

Se você tem uma amiga que desapareceu assim que começou a namorar; se você vê o namorado dela sempre fazendo peripécias grandiosas para demonstrar seu grande amor; se todas as brigas dela terminam com o relacionamento desmanchado, fique alerta e dê um toque. Falo dela em terceira pessoa porque, assim como eu, ela não deve achar que esse relacionamento é abusivo. Porque não, não é fácil saber: quando você está isolada das amigas, da família, e quando toda uma cultura enaltece o sacrifício amoroso como o único valor que a mente e o corpo de uma mulher pode obter, fica-se confusa, alienada, triste, e pouco apta a tomar decisões. Eu precisei de muita ajuda; durante meses eu não conseguia fazer certas coisas sozinha. Eu demorei a recobrar a confiança em quaisquer pessoas, inclusive aquelas que estavam me ajudando. 

No meu caso, o ciclo não chegou à violência física, mas pode chegar. E nesses casos, não importa o quanto a mulher receba de salário, porque a dependência e a opressão aqui envolvem as instâncias psicológica e sociais. Sim, essas pessoas precisam de ajuda - não reforce a ideia de que elas estão em dívida com seus agressores. Elas não estão. Você não está.